20 dias até Paso de Rio Mayer
As bicicletas estavam indomáveis, era muito peso em comida. Compramos muitas guloseimas, mas também muita comida de viagem, vulgo macarrão, polenta, arroz… Os hipermercados de Punta Arenas com sua variedade e preços normais, apesar de estarmos no sul da Patagônia, fizeram crescer os olhos, e no final, foi a nossa sorte. Comprar mais comida do que imaginávamos precisar foi o que nos deu tranquilidade para enfrentar este difícil trecho da viagem.
De Puerto Natales não teríamos parada em nenhuma outra cidade ou povoado até Villa O’Higgins. Não entramos em El Calafate, não entramos em El Chaltén, não pretendíamos muito menos nos desviar até Governador Gregores. Por sorte no meio deste trecho encontramos o povoadinho de Três Lagos e conseguimos comprar mantimentos bem básicos: açúcar, pão, polenta, alguns vegetais já velhos e mais um pacote de achocolatado em pó, tudo a preços absurdos, dado que os produtos vem de muito longe por estradas ruins.
As bicicletas estavam totalmente instáveis pelo peso, íamos mais lentamente por isso, então compensamos a lentidão acordando mais cedo e fazendo mais horas de pedal nos dias em que era possível pedalar. Paramos dois dias em Três Lagos por conta do vento e tempestades de areia, nos abrigamos entre algumas árvores perto do canal, o camping local era caro demais.
Ao partirmos, o rípio da estrada de acesso à cidade fez os engates do bagageiro traseiro da bicicleta do André colapsarem, foi a vez da solução temporária com embraçadeiras plásticas em plenas 6h da manhã. Avançamos mais dois dias pela RN-40 pedalando forte e com vento lateral, com um pouco de sorte pudemos ir pelo asfalto em construção o que adiantou uns km’s no dia.
De Três Lagos fomos parar um pouco depois da Estância la Sibéria (hospedagem com camping, mas que não nos agradou muito, não era protegido do vento, inclinado e cheio de pedras). Seguimos e acampamos no leito de um rio seco, o que não é nada recomendado, mas era protegido do vento e bem plano.( Veja aqui os motivos que Travelling Two encontrou para não acampar em tais lugares.)
Mesmo assim, tivemos sorte e acordamos com um belo dia sem vento. Pedalamos num intenso calor e com pouca água. No final do dia tivemos que parar alguns carros de turistas e pedir por um pouco de água. O vento começou no final da tarde e não chegávamos em lugar nenhum depois de 80km pedalados no dia.
A única informação que tínhamos é que dali a uns 10 ou 15km havia um rio e umas árvores que poderiam oferecer alguma proteção para o insano vento. Não foi preciso ir até tal ponto, apareceu um oásis em nosso caminho, a Estância La Verde, que mesmo um pouco desconfiados e receosos nos deixaram acampar no pomar. E que POMAR! Por algumas moedas nos deixaram colher quantas frutas quiséssemos, damascos, cerejas, pêras, pena que as maçãs ainda estavam verdes. Era mais do que pedíamos aos céus!
No dia seguinte, abrigados pelo pomar, só fomos nos dar conta do vento que fazia quando deixamos a estância. Não conseguíamos pedalar, o vento nos derrubava de lado, caminhávamos aos tropeções a míseros 3km/h no plano.
Este dia foi o recorde mínimo de km’s, exatos 5km até as tais árvores próximo ao rio. Armamos a barraca protegidos por fileiras de árvores e mesmo assim a coitada chacoalhava endoidecida. O vento era tão forte que desprotegidos da barreira de árvores mal conseguíamos respirar.
Tratamos de levantar as 3h da manhã no dia seguinte para tentar escapar do vento. Até as 10h da manhã a tática funcionou. Depois disso, foi só esforço pouco eficiente. Dali onde acampamos já começava os 50km de asfalto até pegarmos o rípio novamente. No meio desse trecho conseguimos água de fonte em Tamel Aike, uma base da Vialidad argentina onde nos mostraram um belo mapa do trecho até a fronteira.
Agora, rípio? Acho que não dá pra chamar aquilo de rípio, nem estrada de terra. Fizeram uma estrada de pedras, não se deram ao trabalho nem de triturá-las, a bicicleta pulava feito touro mecânico, e o vento contra só fazia tudo parecer ainda pior.
Esse foi o dia mais longo de toda a viagem. Noventa quilômetros, 9 horas sobre o selim. Começamos a pedalar as 6h e só paramos as 21h quando encontramos um abrigo do vento em uma base da Gendarmeria Argentina abandonada. Estávamos extremamente cansados e quando encontramos um único veículo nos disseram que a tal gendarmeria abandonada estava a 3km, mas estava a 20km.
Depois disso ficou difícil confiar na informação de moradores locais. Eu só pensava “Não quero dormir em ratoneira! Não quero dormir em ratoneira!” e isso me motivava a continuar forçando o corpo (ratoneiras é o que chamamos essas mini-pontes que constroem sob as estradas para o escoamento da água, e onde não é possível colocar nossa barraca, portanto se não encontrássemos abrigo do vento teríamos que bivacar aí e pra mim isso seria um pesadelo!)
As 21h chegamos ao abrigo do vento, água só de um grande rio, era preciso filtrá-la e fervê-la, já tínhamos muito pouca água potável. Mas ao menos muitas árvores e resquícios de um antigo local de refeições ao ar livre nos oferecia uma grama inacreditável e uma maravilhosa barreira do vento. O entardecer estava maravilhoso, e as nuvens moviam-se rápido.
Aí tivemos mais um dia de descanso forçado. Estávamos doloridos demais para enfrentar mais um dia de pedal contra o vento. Escolhemos descansar e no dia seguinte acordar de madrugada. Este dia de descanso foi necessário mas extremamente triste. Sentia como se nunca mais conseguiríamos sair deste buraco, toda essa dificuldade e sem ao menos saber direito sobre o caminho à frente, saudades de casa, saudades da família, já restavam poucas opções de que nos alimentar, e pra piorar o vento não parava.
Até que o André descobriu pés e mais pés de groselhas. Esse presente natural nos tirou da tristeza. Colhemos sacoladas de groselhas, brancas e rosadas, fizemos uma fogueira e cozinhamos um doce de groselhas! O caminho vem sendo bondoso com a gente, toda essa dificuldade tem sido sempre compensada com surpresas lindas. Primeiro o pomar da estância La Verde, depois essas groselhas maduras numa morada abandonada!
Acordamos novamente as 3h da manhã e as 6h30 partimos já com as baforadas de vento forte na cara, nos impedindo de respirar direito. Paramos na Estância Los Faldeos, a 7km dali, para pedir água. Dia duro novamente. Até parar pra comer era irritante o barulho do vento nas orelhas, dor de cabeça, dor no corpo. Seguimos até alcançarmos finalmente as montanhas.
Passamos por lagos secos, esqueletos de animais, pedras, areia, e finalmente as árvores despontaram no alto das montanhas, o Bosque! O bosque verdejante da Carretera Austral, ah o Chile! Água abundante para todos os lados. Um sonho que novamente se aproximava
Acampamos em um gramado incrível, guarnecidos por árvores típicas da Carreteira Austral, um arroio próximo nos forneceu uma água um pouco suja, mas afinal, água! Não podemos reclamar.
Pra coroar o dia com felicidade de nos aproximarmos novamente do Chile, avistamos um gigantesco condor que contornava uma montanha, voando baixinho e super rápido, gigantesco e imponente.
Essa foto vamos ficar devendo, estará só na nossa memória, pois não fomos suficientemente rápidos. Dali a 40km a estrada terminava, virava caminho até a Aduana Argentina, e depois, trilha de cavalos, cruzar rios, arroios, o desconhecido Paso de Rio Mayer que teríamos pela frente.