A Temida Trilha
Então deixamos o conforto do camping com cozinha aquecida, wifi, banho quente, e descanso pra enfrentar uma manhã fria e úmida. Partimos de Villa O’higgins depois de alguns dias chuvosos esperando pelo barco que nos atravessaria diretamente para o meio do nada. Mas alguém decidiu colocar nome em um ponto no meio do nada, só para os outros pensarem que lá é alguma coisa, aí vem um espertinho e pinta o nome lá no seu mapa. Mas não é nada lá. Candelario Mancilla é só uma pier, e depois tem uma casinha dos Carabineiros de Chile só pra controlar a saída e entrada de pessoas locais, mochileiros e a mais variada sorte de coloridos ciclistas.
Esperávamos muito ansiosos por fazer esta trilha. Imaginávamos muita aventura, perigos, idealizávamos o bosque perfeito que sonhávamos através da fotos de tantos outros ciclistas viajantes, pensávamos que teríamos dificuldades extremas de carregar a bicicleta morro acima, morro abaixo, por cima de troncos caídos, lama, matagal, que choraríamos de dor e cansaço. Mas não foi tudo isso, sinto desapontá-los. O que fez toda a diferença neste trecho da viagem sem dúvida nenhuma não foi o bosque lindo, nem a dificuldade do terreno, ou as maravilhosas paisagens de cinema. Foi sim a companhia de pessoas que podemos considerar amigos para toda a vida.
Ao entrarmos no barco o céu foi abrindo seu lindo azul, e depois de mais de semanas de céu cinzento sobre nossas cabeças, nos sentimos os verdadeiros sortudos. A viagem transcorreu sem muitos balanços até o Glaciar O’Higgins, e ao chegarmos lá fizemos de conta que o barco era um iatchi muito chic e tomamos wisky com gelo caído do glaciar. O barco fica ali nas bordas do glaciar um tempinho esperando o espetáculo do gelo despencando. Nisso a turistada fica trincando de frio fora da salinha aquecida do barco só pra fazer trocentas fotos iguais, só que em coordenadas diferentes.
Na volta, dormimos deitados no chão do barco, não sabendo se foi o wisky ou o balanço do barco, já que na volta o vento afetava mais do que na vinda e estávamos a ponto de desperdiçar todo o café da manhã, se é que você me entende. Acordamos com respingos de ondas e nos mandamos pra dentro da salinha com aquele ar viciado. Lá dentro a turistada dormia e roncava, estávamos junto com um grupo de turistas anciãos de Santiago. Não que ciclistas sejam os seres mais bem cheirosos do universo, mas o cheiro de naftalina lá dentro tava um pouco demais. Acho que a galera teve que tirar os casacos de lã do fundo do baú. E esse cheiro só piorava o fígado, o estômago, tava tudo revirando e dando nós dentro da gente.
Chegando a Mancilla, havia mais ciclistas do outro lado esperando pra ir a O’Higgins. Vimos que um deles limpava carinhosa e metodicamente sua bicicleta. Nosso amigo soltou a célebre frase “Só pode ser alemão”, porque o cara estava limpando descontroladamente cada raio da bicicleta. Para nosso azar fomos descobrir mais adiante que a limpeza da bicicleta não tinha nada a ver com as origens do referido ciclista. Pobres de nós!
Os primeiros 6km da “trilha” são uma estradinha bem lazarenta onde só passam cavalos e essas motocas de 4 rodas que os carabineiros usam pra ir ao shopping pra lá e pra cá. Terríveis pedras soltas e uma inclinação estapafúrdia. A galera fez tanta força pra empurrar, que eu e André tivemos que seguir enquanto o casal de amigos nos avisou delicadamente que a força era demais, e o papel higiênico estava sendo solicitado, bem como a pá de jardim, como manda o figurino do bom viajante de áreas remotas desprovidas de banheiros providos de descarga de água..
Decidimos acampar ao final da subida mais forte, onde encontra-se o mirador ao FItz Roy, e ao que parece muita gente acampa por ali também porque encontramos uma caneta esferográfica em perfeito funcionamento. Lindamente protegidos do vento dormimos como bebês. No dia seguinte pulamos cedo e comemos nossas gororobas antes enfrentar o que tanto nos afligia, a temida trilha. Colocamos tudo quanto foi possível nas mochilas e tratamos de deixar os alforges bem murchos. Isso foi muito útil!
Fizemos a trilha em meio dia, muito calmamente e aproveitando cada minuto e cada metro percorrido. Observando tudo ao nosso redor, cada detalhe, pra não deixar escapar nada deste precioso lugar. Aos poucos fomos pulando troncos, atravessamos brejos cheios de lama até os joelhos, pontes feitas com troncos empilhados, morro acima e morro abaixo, enroscação de alforges em galhos de árvores, em arbustos espinhentos, em pedras, atravessando riozinhos de água gelada, tudo sobreviveu intacto até a magnífica margem da laguna Desierto. Menos a bateria da câmera fotográfica. Ainda bem que os Gendarmeiros foram gente fina e toparam dar uma carga de eletricidade em nossa desfalecida câmera.
O lado norte da Laguna desierto não tem camping, mas é permitido acampar de graça e tem grama pra dedéu lá. Não cometa o equívoco de pegar o segundo barco sem acampar uma noite neste lado da laguna. Do outro lado só tem um camping e é pago, a estrada pra El Chaltén estava em péssima condição pra pedalar, e demandou muita paciência, então deixe pra fazer ela no dia seguinte. Também não tem nenhum lugar cenográfico pra acampar nessa estrada. Então pegue este conselho, que só é de graça porque é o conselho que qualquer um que esteve aí vai te dizer.
Ao chegarmos na Laguna Desierto, pensávamos que éramos os heróis de nossos egos. Mas nosso orgulho lentamente desmoronou assim que fizemos nossa foto triunfal pulando no heliponto dos gendarmeiros. Assistíamos aproximar-se um ciclista que vinha em direção sul-norte, fazendo a trilha brutal ao redor da laguna Desierto em menos tempo que nós fizemos a trilha até aqui. Era um cara belga gigante e de cabeça raspada, trazia pouquíssima bagagem e falava com palavras contadas, ou melhor, arrancadas.
A história dele é mais ou menos assim. Veio pra Am.Sul pra trampar no Torres del Paine de Voluntário, descobriu que teria que pagar pra trabalhar então decidiu simplesmente fazer o trekking de 10 dias, mas ao terceiro dia se entediou e voltou pra Puerto Natales. Encontrou um alemão viajando em bicicleta que o convenceu a comprar uma bicicleta no mesmo dia e seguir sua viagem assim, porque ele afinal odiava viajar de ônibus. E assim pretendia ir até o Peru, com sua nova bicicleta. Apesar de não falar muito, cativou a todos nós com sua história. E a gente que pensa que está vivendo com tão pouco, se depara com um cara viajando com menos ainda. Eu pensei na hora que não seria capaz de sobreviver em uma viagem de bicicleta com apenas uma muda de roupa e agradeci aos quilos extras que levo nos alforges, apesar de eles me fazerem sofrer nas subidas e bestemar em trilhas como esta.
Bom, mas ao menos esta noite vou dormir com uma roupa limpa e seca olhando para o Fitz Roy. Queridinho, nos vemos logo, logo. Alguns dias mais e estaremos aos seus pés, espere aí plantado feito uma pedra que a gente já chega. Ah, Cerro Torre, você também queremos ver, então não saia daí, e diga pra sua bola de sorvete não derreter enquanto a gente não chegar!
Esta aventura é um agradecimento aos amigos e companheiros de viagem que tanto nos divertiram com seus palavrões em italiano e suas risadas contagiantes. O trecho teria tudo pra nos deixar de mal humor pelo esforço, mas estas pessoas tornaram o caminho uma festa e cada dificuldade uma piada. A esta hora eles já terminaram sua aventura de 6 meses pela América do Sul e estão à caminho de sua casa. Abraço enorme Ellen e Marco, nos vemos qualquer dia destes, no Brasil, na Itália ou na suécia, ou em qualquer trilha muito doida por este mundo afora. E que as moscas não nos acompanhem desta vez!