Abancay com Pisco
Para este trecho do Perú tínhamos fortes recomendações em seguir pelas serras, já que vários ciclistas haviam nos alertado de casos de roubo e hostilidades nos arredores de Ica e Lima. Bom, mas aí pegamos a região das montanhas e evitamos o litoral até a região de Ayacucho.
Deixamos Abancay já na metade da manhã, sair da cidade foi fácil, uma descida de 18km pelo asfalto até precisarmos começar a subir pelo rípio em uma estrada em construção. Além de estar uma poeira só, e muito vento, ainda tivemos que andar mais, porque a estrada nova, que será mais curta e mais nivelada (com inclinações menores) está sofrendo detonações de rochas durante as 24h do dia. Então lá fomos nós para mais uma subida de 3 dias. Estes posts do Perú são assim, a cada trecho os relatos se referem a 3 dias de subidas e poucas horas de descida, até onde se encontra a cidade principal daquela pequena região. Em média conseguimos fazer 30km por dia nos trajetos que incluem muitas subidas, em geral saímos de aproximadamente 2 mil metros sobre o nível do mar e chegamos a “pasos”, ou seja, ao ponto mais alto da estrada, a 4mil, 4 mil e 700 metros sobre o nível do mar. Isso já é extenuante em si e devido a este e muitos outros fatores abortamos o plano de seguir pela serra do Perú até encontrarmos com a cidadezinha de Huaraz e sua massiva Cordillera Blanca.
Chegamos em Ayacucho com o moral do grupo bastante baixo. Soubemos que um amigo que seguia a alguns dias a nossa frente havia desistido de sua viagem e estava se preparando pra voltar pra casa. Depois tivemos a notícia que outro amigo ciclista que estava indo também em direção ao norte do Perú (e depois até o Canadá), estava hospitalizado em Lima devido a um acidente na estrada de terra de Cañion del Colca, quebrou a rótula do joelho em um acidente grave causado pela quebra do seu bagageiro dianteiro numa descida. Nossa paciência com as subidas infinitas estava chegando ao fim. Também agravava a isso o fato de termos ritmos diferentes do casal de amigos que vinha viajando conosco desde a Bolívia. Nós mais lentos nas subidas, eles mais lentos nas descidas. No final do dia nossas médias seriam as mesmas, mas a intenção de seguirmos juntos para fortalecer nossa segurança nos forçava a permanecer juntos e esperar uns pelos outros sempre, e isso foi gerando uma tensão entre nós que não queríamos admitir, mas existia. Então em Ayacucho decidimos tomar uns dias de descanso num hostel bem bonito que encontramos no centro. O preço era acessível e o jardim uma delícia. Conseguimos relaxar bem e ter a cabeça limpa pra pensar direito. Acabamos tomando a decisão unânime de descer para a Panamericana até Pisco e de lá tomar um ônibus até Lima, depois de Lima um outro ônibus para deixar a área mais densamente povoada.
Foi o melhor que fizemos. Estávamos entediados com a paisagem montanhosa desde que saímos de Abancay. Eram só subidas em meio a montanhas com reflorestamento de eucaliptos, alguns vilarejos tradicionais, e estradas complicadas. Em um trecho fomos retidos diversas vezes pela manutenção da estrada, e isso atrasava ainda mais nosso ritmo, que além de lento pelas subidas e altitude, precisava esperar a liberação de estradas em horários mais complicados. Sabíamos que haveriam mais trechos assim em outros pontos, seguindo pela serra. Então “descemos” pra Pisco.
Descer é modo de dizer, ainda tivemos dois passos, um acima de 4.500 metros sobre o nível do mar, e outro a 4.700msnm. Mas a paisagem mudou muito à medida que deixávamos de ir sentido sul-norte e dobrarmos para sentido leste-oeste. É possível apreciar cores lindas nas montanhas, que revelam formações diferentes das que passamos em outros passos de similar altitude. Foi o ânimo que precisávamos para seguirmos todos juntos, nos sentíamos muito animados com as paisagens mudando outra vez, e também com uma sensação diferente em cada vilarejo que passávamos. Fizemos as pazes com os gritos de “gringo”, já que diminuiram em frequência e desta vez vinham acompanhados de um “buen viaje”. Os lugares onde o final do dia nos presenteou foram lindos, um deles estava cheio de viscachas, que fugiam ao menor movimento nosso em direção à elas. Era só ir ao “toalete” entre algumas pedras para notar várias delas saltitantes entre o pedregal.
O último “paso” antes da fenomenal descida ininterrupta de 140 km até pisco foi o mais difícil e demorado de todos. Apesar de ser mais baixo que o anterior, nos exigiu maior desnível provavelmente, porque estava realmente lento nosso ritmo. Passamos por partes de rocha completamente branca, e ao fundo muitas cores nos rodeavam nas outras montanhas. Além dos desenhos da natureza, nos impressionavam as vilas acima de 4 mil metros de altitude, tudo indicava que eram vilas de mineiros e suas famílias, era difícil encontrar algo que pudéssemos consumir nas pequenas vendinhas, a única coisa que pareciam ter de confiável era refrigerantes do tipo cola de procedência peruana mesmo. O último dia de subidas foi intenso em exercício físico e emoções, porque o que pensávamos ser um plano no final do último passo, se revelou uma inclinação leve com forte vento contra, isso já no final de um dia super cansativo e paisagem monótona. Tivemos que forçar o ritmo para descer alguns quilômetros antes de montarmos acampamento, onde a temperatura e os ventos fossem mais amenos.
Tivemos um entardecer esplendoroso já em baixas altitudes, víamos um horizonte infinito e o vale que descia até a visão perder o alcance. A profundidade daquelas montanhas era assustadora, a todo tempo comentávamos sobre os freios, será que aguentariam 140 km de pura descida? Ao menos era o que prometia o google earth. Montamos nosso acampamento com o sol se pondo num Oceano Pacífico que não víamos, mas que sabíamos que estava lá, nos esperando no dia seguinte. Estávamos todos super exaustos, já adormecíamos antes de cair a noite. Na manhã seguinte muita excitação com a expectativa de ter um dia inteirinho de puras descidas. E realmente os primeiros 60km foram de inclinações loucas e curvas insanas. Não sei como não vimos nenhum acidente de carros, aquelas curvas e o despenhadeiro logo ali… sei não. Acho que é por isso que os peruanos dirigem mais devagar que os brasileiros. Se fôsse colocar uns motoristas brasileiros por aqui, ai ai ai ai… Depois destes 60km iniciais avistamos uma subida e falamos ao mesmo tempo “What the hell is this uphill doing here?!”, ou “Mas que infernos esta subida tá fazendo aqui?!”.
Seria cômico se não fosse trágico. Não tínhamos mais pernas porque usamos elas ontem até o talo, não esperávamos por nada no mundo ter que pedalar na nossa “Descida dos sonhos”, na nossa “Descida das nossas vidas”, nossa tão desejada e idealizada descida de um dia inteiro! E pra piorar começava um vento contra vindo do oceano e aquela névoa característica da costa do Pacífico nesta estação.
Os restantes quilômetros tivemos que pedalar, não estávamos esperando por essa “Oh shit!” Mas a nossa sorte foi termos permanecidos unidos, apesar de nossas irritações de convivência 24h por dia, há mais de dois meses, estar se somando, mas conseguimos colocar a amizade e o companheirismo acima de tudo e seguimos até Pisco revezando a dianteira para conseguir um bom ritmo e velocidade. Acho que se não fôsse o pique de Ali e Florin a nos contagiar não teríamos alcançado Pisco naquele dia, mesmo assim não foi possível salvar o bom humor da equipe, estávamos cansados demais para brincadeiras e bom humor, ânimo suficiente só mesmo para não deixar a cortezia e a boa educação de lado. Só conseguimos recuperar o tal do bom humor perdido depois de um bom banho quente em um hotelzinho qualquer nos arredores de Pisco. Na manhã seguinte, descobrimos que a garagem do ônibus para Lima era do ladinho do hotel onde ficamos, acho que foi o presente que a gente precisava para recuperar o bom humor! Lá fomos nós 4 enfiar 4 bicicletas carregadas dentro do bagageiro de um ônibus pequeno, não sofrendo nenhum abalo de humor desta vez, mesmo com as negativas do motorista que afirmava categoricamente que não conseguiríamos fazer caber tudo aquilo. Mas conseguimos! Lima, aí vamos nós… só que não pedalando. Um pequeno trecho de Panamericana antes de Pisco nos convenceu a não insistir em pedalar por ela até Lima. Paciência!