Acre-Rondônia
Seringueiras no Parque Capitão Ciríaco, em pleno centro de Rio Branco
Saímos de Capixaba bem cedinho pela manhã, fazendo a Ana Paula e o Estevão pular da cama e bater nossa tradicional foto de despedida. Todos prontos para ir ao trabalho! Lá vem mais estrada, teríamos uns bons 70km até a capital acreana. Por azar, nossa lembrancinha aos que nos ajudam pelo caminho haviam acabado, então saímos meio assim de mãos abanando, mas com a certeza de que levaríamos conosco novos amigos.
Assim foi o Acre do começo ao fim, amizades que levaremos pra sempre! Foi por conta de um amigão querido lá de Floripa que encontramos um porto seguro pra descansar dos dias de pedal intenso pelo calor amazônico. Calor que não está só por conta do clima, mas pela sua gente.
E não é que chegamos em Rio Branco e nosso amigo terceirizado nem sabia quem éramos e porque raios estávamos enviando mensagem a ele pedindo ajuda? Só sabia que éramos amigos de um amigo dele. Só! É que pensamos que nosso amigo em comum havia introduzido a história ao passar o contato de seu amigo acreano para nós. Mas de fato isso não aconteceu. No entanto, quando o coração é grande, a solidariedade é imensa, daquela que não tem medida mesmo.
Assim que chegamos nos arredores de Rio Branco e com sinal de wifi do Parque Chico Mendes, com a senha gentilmente cedida pelo pessoal de lá, conseguimos enviar mensagem pro nosso amigo do amigo, o diálogo digital foi mais ou menos assim: “Chegamos em Rio Branco, tem como dar uma força pra gente?”. Pensando que o rapaz já sabia que chegaríamos de bike e precisaríamos de um lugar pra esticar os isolantes e guardar as bikes. Aí a resposta “Posso ajudá-los sim, mas me digam como.” Pensamos, “Ué?! Será que ele não recebeu mensagem nenhuma?” Aí foi “Chegamos de bicicleta, estamos de viagem, Dudu não falou nada? Teria um espacinho pra uma barraca e duas bikes no seu quintal? Ou conhece algum camping na cidade?”
Bom, o que se segue é a demonstração da mais gente-finisse, se é que essa palavra existe. Mas como se trata de um cara poeta, acho que ele nos permitirá uma expressão assim inventada e possivelmente inexistente pra descrever o que ele fez por nós. Veio até o parque onde estávamos e nos guiou até sua casa, em meio ao intenso, porém nada desrespeitoso trânsito de Rio Branco. Cidade que desde o começo nos impressionou pelas ciclovias e pelas estruturas de parques arborizados. No caminho passamos conhecer o Parque Capitão Ciríaco, bem no meio da cidade, onde vimos pela primeira vez a seringueira e o látex amazônico. A partir do primeiro contato com o poeta, toda experiência que vivemos nestes dias foram muito bons. Quando a energia de uma pessoa nos contagia, tudo fica mais bonito.
Me deliciando com as publicações na Biblioteca Pública de Rio Branco, enquanto André acessava a internet. Tive até a companhia de uma amiguinha de fita adesiva.
Tivemos então a alegre companhia de Félix César, sim este grande feliz amigo, que está no nosso coração! Aprendemos tanto contigo amigo, não temos palavras suficientes pra agradecer tudo que fizeste por nós, portanto, vamos deixar as palavras sobrar pras tuas poesias, aquela que nos deste e que vai virar um quadro um dia lá em casa:
“Quando menos nos vestimos da gente, mais precisamos de roupa” (Félix César)
César nos guiou pela cidade, mostrando com orgulho cada cantinho da capital acreana. Mas o cantinho que vimos o brilho no olho do amigo foi mesmo a Biblioteca Pública. E não é pra menos. Se eu fosse acreana, teria um imenso orgulho de contar com tal estrutura facilitadora, inclusiva, convidativa, fascinante e instigante. Mas como Acre é Brasil, embora muitos tripudiem, posso ter orgulho da biblioteca de Rio Branco também. Eram tantos e tão bons livros que consegui mapear com o olhar nos primeiros passos dentro da biblioteca, que fiquei imaginando quanto não tem então de escondido, guardadinho, organizado em prateleiras no fundo de tantos corredores. Realmente foi a melhor experiência dentro de uma biblioteca que tive até hoje, uma vontade de acampar por ali, pernoitar nos pufes, e passar o dia a ler de tudo, tantas publicações maravilhosas, até uma sessão inteirinha de HQ’s. E se não bastasse o acesso a cultura escrita, há também sessões de cinema gratuitos em uma pequena sala de cinema, mas com toda qualidade e conforto. O mais lindo de tudo, foi ver aquele movimento, aquela multidão andando pelos corredores, muitos apenas parados contemplando um livro, alguns de passagem, mas sempre cheia. Biblioteca pública, no centro comercial da cidade, cheia de gente?! É!
Caldo de Tucupi, um subproduto da mandioca/macaxeira, muito comuns no Norte do Brasil.
E o amor e orgulho do acreano estão bem estampados. Nas ruas, não era raro ver carros e estabelecimentos adesivados com a bandeira acreana dentro de um coração. A população sente orgulho de ter conquistado este pedaço de chão. Além do orgulho pela terra linda, há o orgulho pelas tradições e manifestações da cultura bem amazônica, como a culinária e alimentos típicos, que é algo que nos encanta pelo estômago. Nosso amigo nos levou em um dos mercados de frutas, nos deliciamos com toda aquela variedade de frutos da floresta, enquanto ele nos contava da sua experiência trabalhando com o pessoal da Reserva Extrativista Chico Mendes. Uma história a parte, que agora ficará só na nossa curiosidade, porque não sabíamos antes e passamos direto pela entrada da reserva, sem ir conhecê-los e ver como é possível viver apenas do extrativismo consciente, sem desmatamento, sem monocultura, sem devastação e desrespeito com aquela que fornece nosso alimento saudável de cada dia, a mãe terra!
Foi uma dificuldade muito grande decidir a hora de seguir viagem. A vontade era ficar mais e aprender mais com nosso amigo poeta/professor e guia turístico especializado em nos mostrar os trajetos mais agradáveis de se fazer a pé, pela sombra. Porque Rio Branco também é arborizada. De nos despedir de Dona Raimundinha, um amor de pessoa, nos tratando como filhos também. É sempre dolorosa a despedida quando ganhamos mais uma família do caminho. Mas estamos indo ao encontro de nossas famílias de origem, e isso também nos apressa um pouco, nos faz nos demorar menos. Também há a sazonalidade das chuvas, que nos fez apressar porque pretendíamos ainda pedalar um bom trecho pelo Pará . Há várias forças em jogo, as que nos fazem querer ficar, e as que nos impulsionam a partir, outra e outra vez ao desconhecido. Cada casa que deixamos a cada nova manhã e um desapego doloroso mas necessário, um constante não saber o que será do final do dia.
Na casa do poeta! Nossa família acreana por uns dias, já temos saudades…
Assim tivemos de seguir o fluxo da Ciclo Via Chico Mendes, que nos levaria para a saída da cidade, rumo ao estado de Rondônia. Por termos nos demorado em sair, devido a todas as despedidas e novos assuntos que surgiam a cada início de tentativa de dizer tchau, acabamos pedalando pouco neste dia e conseguimos avançar ínfimos 30km até dar de cara com um igarapé convidativo na beira da estrada. Justo naquela hora de maior calor, o meio do dia.
Ciclovias de Rio Branco, muito convidativas e funcionais, facilitam a visão do ciclista em relação ao cruzamento de automóveis, bem como facilita ao motorista ver a trajetória do ciclista com antecedência.
Foi no Balneário Quinauá que o desconhecido destino do dia teve fim com um belo banho de águas negras e refrescantes. Montamos nossa casinha pedindo licença pros mosquitos e fomos tratar de absorver todas aquelas experiências que tivemos em Rio Branco. Dia seguinte, novo dia. Onde iremos parar?
Igarapés convidativos na beira da estrada tem uma consequência: pouco rendimento do pedal diário. Ah! Que refresco!
Depois de umas poucas horas de pedal, encontrar o Balneário Quinauá foi uma delícia! Refrescante banho nas suas negras águas.
Pedal duro o dia todo, sol na moleira, nenhuma sombra. Passaram a gilete na floresta. Sobraram só árvores metálicas gigantes conectadas por uns estranhos cipós elétricos, que nem o mais valente Tarzan se aventura em pendurar-se. Já chegando a noite, encontramos uma escolinha em reforma, os trabalhadores nos levaram até o responsável, que nos concedeu autorização para pernoitar dentro da sala de aula, já que as nuvens escuras e pesadas já anunciavam uma bela tempestade.
Escolinha perto da divisa de estados Acre/Rondônia, que nos abriga em mais uma noite. Final de semana é bom para conseguir uma ajuda para o pernoite.
Noite também partimos, eram 5:20 e já estávamos rodando, com as lanternas ligadas a não ver nada no asfalto cheio de buracos. Odeio pedalar de noite, mas tínhamos pressa em chegar até a Balsa no final do dia. Se deixássemos pra pegar pela manhã, lá se ia meia hora do horário fresco, horário que preferíamos estar pedalando. Mas por informações erradas que tomamos na estrada, e um pequeno e incoerente mapa de poucos detalhes, não conseguimos chegar até a Balsa. Em Vista Alegre de Abunã nos informaram que ainda faltavam 30km até a balsa, e já havíamos pedalado 130km. Buscamos mais uma vez abrigo nas escolas da cidade. Na segunda tentativa, fomos acolhidos em meio a uma confusão. O ventilador da despensa havia dado curto circuito e pegou fogo e derreteu o forro. Por conta disso o vigia teve de chamar a diretora. Para nossa sorte, com a presença da diretora pessoalmente, ficou mais fácil conseguir a autorização para dormir na escola. Só que por conta do pequeno incêndio, a bomba de água não estava funcionando, e devido ao movimento do evento que acontecia na escola, a caixa d’água havia esvaziado. Não teríamos água, muito menos banho. Mas o eletricista veio trabalhar mesmo no final de tarde do domingo, e por mais uma vez, ela, a dona sorte, tivemos então água com pressão de cachoeira nos chuveiros do vestiário do ginásio da escola. Ah, maravilha, um belo banho depois de 130km de pedal nesse calor não é nada mal!
Agora sim, finalmente um trecho reto, sem morros. Só que péra, cadê a floresta? Depilaram a Amazônia!
Mais uma escola,Vista Alegre de Abunã, já em Rondônia. Desta vez, acampados no ginásio de esportes, depois de um dia de 130km de pedal. Chegamos a noite, e saímos ainda de madrugada rumo a Porto Velho.
Outra manhã de madrugar. deixamos a escola antes das aulas começarem, antes do sol raiar e as 8:20 já estávamos dentro da balsa, cruzando pela primeira vez o Rio Madeira. Depois de atravessar de balsa, as estradas ficam planas por um bom tempo. Só mais próximo de antiga Mutum Paraná é que começam algumas serrinhas. Sem saber que esta cidade não existia mais, pois foi movida para outra região em virtude da área que será alagada pela Hidroelétrica de Jirau, fomos parar só com sofridos 110km percorridos no dia, quando encontramos um restaurante e bar. A família nos contou de toda a movimentação em decorrência da construção da hidroelétrica, das indenizações de terras, e das lutas que os moradores locais em vão lutaram. Uma pequena cidade inteira tirada do mapa e incorporada como um bairro de outra cidade. Moveram Mutum Paraná de uma região arborizada, na beira do rio, vimos as mangueiras a dar frutos para ninguém, construções abandonadas, tudo irá alagar. E os antigos moradores movidos para Nova Mutum, um terreno aplainado, no topo de uma subida, a beira da estrada, nenhuma árvore nos quintais, casas todas iguais, ruas planejadas, nenhuma mangueira a dar frutos, de frente para uma fábrica já desativada, nenhum rio a correr ao lado. Uma realidade triste. A população pouca chance tem diante destas grandes corporações que acham que com dinheiro resolvem tudo.
A família do bar que nos abrigou, vive a 2km de uma subestação da hidroelétrica. Mas eles mesmos não tem energia elétrica instalada na residência. Tudo funciona a gerador. Ligam só a noite, para economizar. Toda comida do restaurante deve aguentar no refrigerador que só vai funcionar durante a noite. Não há telefonia, nem sinal de celular, eles não tem comunicação com o mundo ali, apesar de os cabos de fibra ótica passarem a poucos metros de sua propriedade, ali do outro lado da pista. As incoerências deste país. Para quem mesmo estão produzindo esta energia? Pra população brasileira. Aham, sei…
Planícies de Rondônia, antes de pegarmos a balsa para travessia do Rio Madeira.
Próximo a antiga ponte de Mutum Paraná, muitas máquinas trabalham na remoção da madeira das árvores que irão atrapalhar a hidroelétrica. Será que os antigos moradores destas terras sabiam disso? Que vão fazer com toda essa madeira as empresas responsáveis pela usina? Embora esta realidade que vimos e ouvimos da população local nos entristeça, o que nos dá forças para seguir conhecendo nosso país é a esperança de que a natureza se regenerará algum dia deste ferimento profundo. Em pequenos pedaços de mata isolados por um mar de desmatamento, os animais resistem e se exibem em todas suas cores. Como é possível que nossa espécie tenha coragem de acabar com essa beleza em nome do dinheiro, desse desenvolvimento atrapalhado?
Onde ainda há algum pedaço de floresta, abundam aves coloridas, como este barulhento tucano. Lindo demais!
Por conta do desmatamento em virtude da hidroelétrica e também da extensiva área de criação de gado, as sombras na estrada são escassas. Durante os horários de sol mais intenso temos que parar nas poucas oportunidades que temos, e geralmente são estas casinhas de teto de palha, construídas por moradores das margens da rodovia, geralmente próximo a assentamentos ou entradas de estradas vicinais.
As poucas sombras ficam por conta dos abrigos que os moradores de assentamentos da beira da estrada constroem para esperarem os transportes coletivos.
Um solitário cajueiro no acostamento. É claro que não tivemos dó nem piedade só porque o caju era bonito e lustroso. Mandamos pra dentro! Delícioso!
Já chegando próximo a Porto Velho, nos deparamos com uma imagem de uma arara, sentadinha no pilar do portão de uma casa. Sem ter certeza se era de verdade ou de mentira, devagar fomos nos aproximando dela. Logo depois de conversar um pouco com a arara e os donos da casa, fizemos uma pausa de descanso em um ponto de ônibus de frente para um imenso descampado com umas cabeças de gado invisíveis. Da estrada que leva até a fazenda, um imenso caminhão carregado de toras de madeira com diâmetro muito acima de 1m e comprimento absurdo, passa por nós. Não conseguimos tirar a máquina fotográfica a tempo de registrar a cena. Não havia nenhuma placa de registro nas toras. Isso pode indicar que sua extração possivelmente é ilegal.
Não conseguimos chegar em Porto Velho neste mesmo dia, paramos então no Balneário do Souza, mesmo local onde o amigo Thiago Fantinatti relata que pernoitou em sua jornada no livro Trilhando Sonhos. Infelizmente o seu Souza não é mais proprietário do local e não pudemos conhecer a figura. Mas tivemos um delicioso final de dia, bela paisagem e água refrescante de igarapé pra esfriar a cuca de tantas desilusões.
Você seria capaz de dizer se é uma arara de verdade ou um enfeite sobre o portão?
Mas era a Lara! Uma arara muito simpática, que vem se aproximando conforme nos aproximamos. Ela foi capturada quando pequena e sofria maus tratos. Foi então adotada por uma família que lhe dá liberdade, mas ela não soube mais se adaptar à vida selvagem outra vez. Contaram que no Natal ela saiu, ficou 3 dias fora. Quando voltou, dormiu por 3 dias, exausta que estava. Dizem os fofoqueiros que foi em busca de um namorado…
Faltavam pouco mais de 40km até Porto Velho, que conseguimos tranquilamente cumprir na manhã seguinte. Chegamos sem ter onde ficar na capital, pois nosso contato por lá não estava na cidade. Fomos então buscar informações do barco até Manaus, e soubemos que estava para partir em uma hora. Ainda teríamos que providenciar muitas coisas, mas o próximo barco seria só dali a 3 dias. Decidimos nos apressar e o pessoal da agência nos ajudou, levando André de carro para sacar dinheiro, comprar as redes onde dormiríamos no barco, uma marmita de arroz com feijão, e um bom estoque de comida para os 4 dias de viagem. Não pudemos conhecer muito bem Porto Velho, e a parte que conhecemos no caminho até o porto não foi muito agradável. Esperamos que em outra oportunidade possamos conhecer melhor esta capital, não foi desta vez. No próximo post contaremos como foi essa viagem maluca de barco até Manaus.