Amazônia Peruana
Este post é um tanto longo. Mas acho que a despedida das terras Peruanas merece, ainda mais porque finalmente chegamos à floresta Amazônica, nossa emoção é grande! Além do mais, serão nossos últimos quilômetros por este país que nos acolheu por mais de 3 meses. Também não esperávamos ter tantos acontecimentos nos aguardando neste trajeto que deveríamos cumprir em poucos dias, mas que acabou se estendendo. Vamos descer essa ladeira com a gente? Bóra! Opa, pera aí, deixa só conferir os freios aqui. Certo, vamos lá!
A descida de aproximadamente 100km foi uma delícia, dos 4.725 msnm até próximo dos 600 msnm, sempre suave o suficiente pra ser preciso frear só nas curvas mais fechadas. Mas o começo estava frio, com nevoeiro denso e úmido quase como um chuvisco, um borrifador nas mãos de Deus. Tivemos que parar a certo ponto e colocar meias nas mãos, por cima das luvas, pra evitar congelar os dedos. Nada de ver a floresta amazônica até o horizonte! Só nuvem, nuvem, nuvem…Passamos pelo povoado de Marcapata no meio da descida, e compramos alguma coisa pra lanchar, sabe aquela maravilha de pão do mês passado com geleia de morango, só pra enganar até chegar na selva, onde esperaríamos encontrar uma multicolorida feira cheia de frutas e verduras de verdade.
A paisagem mudou rapidamente, deste pasto seco e dourado da alta montanha para florestas verdejantes e musgosas, muita umidade, montanhas ainda incrivelmente altas e íngremes, muitos rios, cachoeiras e nascentes. Lembrava um pouco a Carretera Austral, no sul do Chile, misturado com Vale Sagrado peruano, pois ainda estávamos a certa altitude, talvez 2 mil metros ou menos, mas a umidade que vinha da selva fazia a paisagem ser diferente de qualquer outra que estivemos antes no Perú na mesma altitude. A descida segue no asfalto novo e liso, um perigo para pneus lisos demais! Aos poucos a névoa e o chuvisco deram lugar para uma chuva forte. Paramos numa casinha que exibia bananas aos montes na varanda. Já havíamos passado por grandes quantidades de bananeiras, então é óbvio que aqueles ali deviam ser do quintal mesmo, o melhor produto você sempre consegue direto com o produtor. Que delícia! Comemos umas 8 bananas cada um, ali sentados na varandinha da tia que vendia, esperando um pouco a chuva diminuir.Ali fomos informados que havia uma paralisação na estrada logo mais abaixo, e que não estavam passando veículos depois do Povoado de Quincemil, e o bloqueio se estendia até Puerto Maldonado por tempo indeterminado. Ficamos um pouco apreensivos mas não tinha o que fazer, afinal, já tínhamos descido metade da elevação, e não havia nenhuma possibilidade de voltarmos pedalando até Cusco,na-na-na-na-não! Então seguimos. Deixamos pra decidir o que fazer quando chegássemos mais perto.
Desce, desce desce, e logo a temperatura aumentou muito, sinal de que já estávamos bem baixo, e seria a última vez que usaríamos aquela carcaça de roupa de frio. Tiramos todo o miolo de roupas e ficamos só com a primeira camada e a capa de chuva. Que agonia! Que alívio! Encontramos um pedágio e paramos ali pra fazer um lanche debaixo de um teto, fora da chuva. Pensamos em acampar por ali, havia muita grama, e também com a intenção de economizar uma hospedagem na cidade. Fomos falar com o policial que estava ali e ele disse que não podíamos acampar ali, além do mais seria impossível que nos deixassem passar na Paralisação dos Mineiros, e que eles eram violentos e poderiam nos fazer mal, por sermos turistas, sequestros, violência física e estupros eram uma situação fácil de ocorrer na cabeça do policial. Falou que era melhor voltarmos pra Cusco. O quê?! Tá lesado homem?! Pronto, tchau, tamo indo ali voltar os 100km subida acima, de volta aos 4700 metros e depois até Cusco, pra daí a greve terminar e a gente voltar pro Brasil de busão. Isso, ótima idéia, aham…
Ficamos um tempo ali com mapas na mão tentando encontrar uma outra solução, tentando pensar que o cara tava exagerando nos perigos, que não fosse preciso passar pela confusão, que esse negócio de violência com turistas é só terrorismo do policial, coisa de quem assiste televisão de mais. Mas as únicas opções eram ou voltar a Cusco, ou seguir adiante, até porque para entrar pelo Brasil via Bolívia, deveríamos necessariamente passar pelo bloqueio. Voltar a Cusco de carona ou de ônibus não era uma opção para nós. Pedalando então? Há! Mesmo sem dinheiro, preferiríamos esperar o tempo que fôsse para cruzar diretamente ao Brasil por terra, e pedalando! E a nossa única opção era seguir adiante.
Pensamos em ir até Quincemil porque ali não nos deixaram acampar. Na polícia do povoado nos disseram notícias totalmente diferentes.Olha como mudam as perspectivas! Falaram que os mineiros em greve nos deixariam passar sim, que o movimento só era violento entre policiais e mineiros, quando acontecia alguma repressão por parte dos militares, e que só seria preciso passar pelas barreiras carregando as bicicletas em alguns trechos. Com esta segunda opinião, fomos percebendo que conforme mais perto chegávamos do “problema”, menos grave ele nos parecia. O que comprova que o “telefone sem fio” só faz é aumentar a história. Ainda assim, caso não nos deixassem passar, só teríamos dinheiro para comprar comida para 3 ou 4 dias, e nos povoados anteriores a Puerto Maldonado não há nenhuma maneira de tirar dinheiro usando a varinha de condão magnética. Como diz meu irmão, “Se nada der certo viro Hippie!”, o plano B seria tentar trocar por comida por algum serviço tipo lavar pratos, cortar a grama, vender pulseirinha pros turistas presos na cidadezinha minúscula por conta do bloqueio. Só que não vi nenhum gramado na cidade, e nenhum turista. Talvez nosso destino vai ser lavar os pratos mesmo…
Decidimos procurar uma hospedagem por ali, mas foi difícil. Entre nossa meia dúzia de opções, algumas hospedagens estavam lotadas por pessoas esperando a paralisação encerrar, outra cara demais, uma ou duas não fizeram questão de nos atender, e uma última me fazia ter uma vontade louca de armar a barraca no meio da pracinha da cidade. Então compramos algo pra cozinhar e para café da manhã e seguimos pela estrada saindo da cidade, tentando achar alguma propriedade rural e pedir pra acampar. Mas saindo do povoado só o que tinha era boate/casa de prostituição (ou suspeitas disso) e mato.
Acabamos encontrando uma entrada que ia em direção ao rio, pensamos ser um acesso para quem vai pescar no rio e fomos até lá pra ver se era possível acampar. A estrada parecia bem precária e pouco usada, só que não! Encontramos um lugar plano, resquício da construção da estrada de asfalto, mas devido a chuva daquele dia, estava bastante alagado e úmido. Era só pisar que o pé afundava bonito na terra. Mesmo assim decidimos ficar por ali. Não havíamos visto nenhuma casa por perto e ninguém passando, apesar de termos verificado que a entrada na verdade era uma estrada que continuava seguindo. Quando já havíamos tomado um banho com a água de um pequeno arroio que passava, íamos montando a barraca quando ouvimos barulho e luz de motocicleta, pois já entardecia e a noite chegava. Por cinco minutos nos pegariam pelados por aqui! Sorte viu!
Passaram ainda duas pessoas caminhando, uma se deteve primeiro assim que nos viu e falou algo que não entendemos com o outro cara. André achou melhor ir lá e conversar, vai que era terreno de alguém? Mas eram só trabalhadores da estrada que estavam voltando pra casa do trabalho. Um deles falou que ali era perigoso, porque era lugar “silencioso” e não havia ninguém por perto, que o melhor era acampar na praça do povoado. Já o segundo falou que o lugar era tranquilo. Decidimos arriscar e ficar por ali mesmo, até porque no povoado acampando na praça viraríamos atração turística. Queríamos dormir sossegados, com silêncio e calma, apesar do risco de algo acontecer e ninguém nos ouvir. Mas, torcemos pra dar tudo certo. Tem sido sempre essa emoção no Peru, uma sensação de perigo na medida certa pra nos deixar alertas.
Foi então que percebemos que o local não era nada silencioso, conforme o trabalhador antes havia dito. Muito longe disso. Foi chegar a escuridão que o barulho começou. Queríamos dormir mas ouvíamos uma verdadeira algazarra. Eram grilos, aves e sapos, fazendo uma baderna fenomenal pra aquela hora da madrugada. Essa orgia barulhenta das aves principalmente em plenas seis horas da tarde era um absurdo. Mas pra nós, um absurdo delicioso, fazia tanto tempo que não dormíamos embalados aos sons da natureza. Será que eles queriam nos dizer alguma coisa? Só sei que todo aquele barulho nos acalmou. E ver todos aqueles vagalumes agitados, parecendo aumentar o tamanho do céu e a quantidade de estrelas, um bom truque pra nos fazer acreditar que tava tudo sob controle d’Ele lá em cima. Também, numa hora dessas, só é preciso confiar, agradecer e ter coragem pra fechar os olhos.
No altiplano só há o ruído do vento e da chuva, ou de algum riacho que passe perto de onde se acampa. Nunca lembro de ter ouvido grilos, jacus ou coisa parecida nas altitudes, desde Salta, na Argentina, que entramos na altitude. Os únicos animais que embalavam (ou estragavam) nosso sono há mais de um ano eram os animais domésticos, como cães principalmente, latindo sem razão aparente no meio da madrugada, ou os galos a nos acordar em pleas três horas da manhã, ou ainda gatos brigando, com aquele ruído detestável. Então essa noite foi um deleite pra nós. Apesar de estarmos com receio do local onde acampávamos, e de termos medo da terrível selva peruana e seus habitantes humanos, dormimos bem. Floresta, como és linda!
Ah, o calor! É possível sair da barraca sem cerimônia e sem bater de dentes em plenas cinco horas da manhã, hora que aliás, já está dia claro. Mas aqui se acorda antes, os pássaros nos despertaram muito antes de clarear o dia! Tomamos nosso café da manhã e desmontamos acampamento. Precisávamos lavar as roupas e fomos ao pequeno arroio munidos de nosso balde de plástico, feito de uma embalagem de galão de água. Os grilos tinham razão, a noite foi tranquila, estávamos seguros! Acabamos começando a pedalar quando o sol já estava forte, oito horas da manhã. Que verão! Estamos mesmo desacostumados com o suor, o calor úmido da floresta. Tivemos ainda algumas sofridas subidas, que nos faziam transpirar em cem por cento de nossos poros. A temperatura era absurda, ai minha bunda! E ainda não eram nem nove horas da manhã, o que o dia reservava pra nós! Tivemos ainda muitas descidas pra nossa sorte, e chegamos numa ponte onde nos avisaram que estaria a polícia de prontidão e dali para frente era área dominada pelos grevistas mineiros.
Falamos com os policiais e não fizeram nenhuma menção de nos impedir de passar. O confito estaria mais a frente em Mazuco. Fizemos diversas paradas em pequenas fontes de água que brotavam das pedras na beira da estrada, éramos obrigados a nos refrescar a cada pouco, o calor era forte demais e nos deixava meio tontos, zonzos e molengas. Molhamos as roupas depois de botar a cabeça debaixo da água várias vezes. Chegamos na ponte do conflito, logo antes da entrada da cidadezinha de Mazuco. O local estava visivelmente bagunçado mas ninguém impediu nossa passagem, e fomos pedalando como se não soubéssemos de nada, como se nem estivéssemos reparando no caos ao redor, tentando transparecer normalidade, nem olhando para os lados, não encarando ninguém nos olhos, não cumprimentando ninguém com um “boa tarde”.
Haviam muitas pessoas por todo lado, nenhuma delas ocupda, estavam todas ali só olhando o movimento. Só homens. Mais a frente, muitas camionetes de polícia, cheias de policiais até na garupa, boinas vermelhas, uniformes, armas em punho a desfilar nas ruas da cidade. Medo! Os grevistas só olhando pra gente sentados nas calçadas. No centro da cidade, lojas fechadas e muito lixo nas ruas vazias de veículos, cheias de homens parados, observando e alguns fazendo piadas que não compreendi, mas que vinham para nós, algumas palavras de mal gosto. Tapamos os ouvidos com pálpebras auditivas imaginárias, concentramos o olhar no chão, para evitar o máximo passar sobre algum objeto cortante, como se isso fosse mesmo possível de se evitar. Mas ninguém nos impediu de passar.
Depois do centro de Mazuco, a saída da cidade parecia um pós-guerra, cacos de vidro pela estrada inteira, pneus queimados, pedras espalhadas pelo asfalto pra dificultar quem tentasse passar até mesmo pelo acostamento e grama do canteiro. Mas pra nós nenhum problema. Os pneus aguentaram bem os maus tratos e não furaram nos deixando na mão no meio daquela bagunça de Mazuco. Nossa idéia era sair o mais rápido possível de perto dali. Estávamos tensos e com medo, porque os conflitos com mineiros continuariam nos próximos quilômetros e não sabíamos mais quanto. Pensávamos que seria pouco. Já era final da tarde.
Passamos por uma comunidade indígena e vimos que tinham uma mercearia pequena na casa do lado. Precisávamos de algo pra janta, paramos ali e perguntamos da possibilidade de acampar dentro da propriedade deles, vimos o gramado imenso, também estávamos com receio de continuar devido à greve dos mineiros e encontrar algum bloqueio no próximo povoado. A moça com traços indígenas nos disse que estava construindo uma casa nova, e que ainda estava vazia e sem porta e poderíamos ficar lá à noite, ao menos se chovesse nos abrigaria melhor. Era mais do que queríamos, então agradecemos muito e encomendamos umas mandiocas cozidas, nosso combustível estava no fim e eles ofereceram pra vender, então aceitamos o menu do dia. Nos trouxeram mandiocas do quintal recém colhidas e cozidas, quentinhas! Ainda nos deram dois mamões imensos do quintal. Dormimos num lugar abrigado e tranquilo, tomamos um banho de lencinho mas foi suficiente pra dormir bem. Até havia um rio, mas só poderíamos ir quando o pessoal que estava lá terminasse o banho. Todos na comunidade (ou seria tribo?) tomam banho no riacho, nada de chuveiros. Esperamos mas a noite já caía e não quisemos ir naquele breu, bateu medinho do escuro, hehehe.
Para nossa sorte estávamos sob um teto, porque a noite choveu muito forte. O barulho da chuva do teto foi uma delícia pra dormir e acalmar os nervos. Tentamos sair o mais cedo possível no dia seguinte, mas ainda estávamos nos adaptando a essa rotina de acordar cedo. Em climas frios isso não era problema, já que o sol só nos descongelava mais tarde. Mas aqui o horário próximo ao meio dia seria difícil demais, melhor aproveitar o frescor da manhã. Durante a manhã a pedalada seguia agradável e fresca, mas logo tivemos que encarar uma subida para a Serra Santa Rosa, onde descobrimos que havia mais manifestantes. Umas pessoas que passavam nos disseram pra tomar cuidado porque eles nos apedrejariam se tentássemos seguir pelo bloqueio, mas que fazer? Então seguimos, cautelosos, mas seguimos. Não havia segunda opção.
Passamos por um grupo de pessoas que tinha pedras na mão, estavam com caras fechadas e não responderam ao nosso “bom dia”. Ficamos com medo após passar por eles, porque ainda poderiam nos atirar as pedras pelas costas, à distância. O espelho retrovisor me deixou mais tranquila, porque pude observar seus movimentos sem que eles percebessem uma virada de pescoço, sinal visível de minha desconfiança. Mas apesar das caras pouco amigáveis, nada fizeram contra nós. Mais à frente um outro grupo subia a pé e sumia na próxima curva. Esperamos eles terminarem a subida, com medo que fossem outro grupo com pedras nas mãos. Mas depois vimos que eram pessoas que não estavam tendo transporte que se deslocavam a pé na esperança de conseguir um moto-taxi no próximo vilarejo, deveriam estar em algum ônibus barrado pelos obstáculos. Neste trecho de subida e descida da Serrinha haviam muitas árvores derrubadas e pedras por todo o caminho, sem intervalos pedaláveis, e mesmo de bicicleta os obstáculos eram difíceis de transpor. Muitas vezes tivemos que carregar a bicicleta por cima de troncos e pilhas de árvores grandes em série. O resultado é que o dia rendeu poucos quilômetros. No topo da serrinha, havia um grande grupo de grevistas, mas foram bem amigáveis e todos nos saudaram alegres e desejavam boa viagem. A descida da serrinha foi lenta, a cada 100 metros algum obstáculo para vencer.
O calor era forte, mas para nossa sorte nublou e choveu. Depois de alguns pontos tivemos áreas mais vazias, onde foi possível pedalar e avançar um pouco mais. Passamos também por um acampamento de mineiros que recém cortavam novas árvores. Um povoado que mais parecia um acampamento provisório de mineiros foi bem feio de passar. Eram barracos feitos de madeira e cobertos com lonas azuis, muitas hospedagens eram claramente bordéis maquiados, o local era feito praticamente de palafitas porque a área era alagadiça, e o lixo boiava nas valetas cheias de água por toda a “cidade”. O mal cheiro era não só notável, como impregnante. Na estrada, além dos cacos de vidro e sujeira, motos pra todos os lados, uma barulheira. Tratamos de passar rápido por ali. Como conseguem viver nessas condições?
Depois desse lugar digno de filme de terror, uma estrada limpa! Como pode? Depois de tantas ávores derrubadas, muitas pontes com guard-rails soldados fixos à mureta para que nem tanque de guerra passasse? Começamos a ver fazendas de gado, e logo apareceu um povoado mais tranquilo com casas normais, e logo outro, onde paramos comprar algo pra cozinhar na janta. Nisso vimos um campo de futebol com uma grama convidativa, e o povoado parecia bem tranquilo, já de longe melhor ambiente que o acampamento de mineiros. Fomos até o local e vimos que era uma escola. Pra nossa sorte a professora estava lá ainda. Era sexta feira e ela estava voltando pra Porto Maldonado de moto e nos deixou acampar por ali e até ofereceu a ducha da escola. Perfeito, depois de todo esse calor e mais de 80km carregando a bicicleta por cima de árvores derrubadas na pista, ganhamos esse presente!
O local se chama Unión Progresso, e devido à chuva da madrugada, e persistente pela manhã, decidimos esperar. Conversando com umas crianças que circulavam a barraca curiosas, descobrimos que desde ali já não havia cidades de mineiros, eram somente fazendas de gado e famílias que plantam roça para subsitência. A tensão já estava longe de nós, pois os fazendeiros não facilitam aos mineiros fazer bloqueios por ali, não permitem o corte das árvores das margens da estrada em suas terras, então só resta aos mineiros bloquear com pedras, o que dá muito mais trabalho e tempo, dificultando esse tipo de bloqueio não seguiu mais por muitos quilômetros.
Como os dias anteriores foram duros e não fazíamos um dia de descanso desde Cusco, achamos melhor ficar por ali, um lugar tranquilo. A tarde muitas crianças chegavam perto curiosas, olhões arregalados, e ficamos batendo papo com elas, matando algumas curiosidades engraçadas de criança. Rimos muito quando elas perguntavam sobre porque éramos tão brancos e se nossos cabelos eram naturais ou perucas, porque eram encaracolados, e o de todo mundo no povoado era liso e suas peles mais morenas. Como explicar essas coisas para crianças? Enfim um pouco de naturalidade e calor humano.
Dia seguinte, pernas recuperadas, nos organizamos para pedalar o máximo possível no começo da manhã e enfrentar os bloqueios. Mas estranhamente muitos caminhões estavam passando, um depois do outro. Então antes das 6h da manhã já estava super claro e fresco, rodas na estrada! Por conta da temperatura, não é difícil levantar acampamento em plena escuridão. Só os mosquitos castigavam nossas pernas antes do sol aparecer. Incrivelmente, nenhum bloqueio na estrada. Tudo fluiu, que maravilha. Pedalamos até as 10h30, que foi quando chegamos a Puerto Maldonado, já com 85km feitos. Arranjamos um hotelzinho com internet de frente para a praça de armas, 50 soles era o quarto, sem janelas pra rua, sem ducha quente, mas quem se importa nesse calor? Só queríamos um lugar seguro e com comunicação com o mundo, fazia mais tempo do que prevíamos desde o último contato com a família. O local estava tranquilo e decidimos fazer mais um dia de descanso, para podermos nos alimentar bem e organizar nossas coisas. Eu queria ver se recuperava-se da dor no pulso esquerdo, por conta do esforço em carregar a bicicleta por sobre as árvores derrubadas pelos grevistas, deu um mal jeito. Ficamos sabendo que no dia anterior, o exército se aproveitou da chuva intensa da madrugada para passar máquinas na estrada e remover os bloqueios.
Dia de descanso, dia de comer bem, cozinhar mais caprichado. Fomos ao mercado público comprar vegetais e frutas, mas tivemos que ir de tuc-tuc porque tava calor demais e o mercado longe de onde ficamos hospedados. Acabamos descobrindo um restaurante vegetariano conduzido por uma família de adventistas. Estava uma delícia a comida, simples, bem temperada e barata, sopa, salada fresca e um prato com refogado de legumes, arroz, feijões e também um grande copo de leite de soja e um copinho de infusão de cevada. O local era muito humilde, mas nos surpreendeu pela deliciosa comida vegana caseira, algo bem difícil de encontrar assim ao acaso e ainda mais pagando o equivalente a seis reais por pessoa.
A tardinha compramos um vinho para comemorar nossos últimos quilômetros pelo Peru, comemorar que tudo deu certo até aqui, comemorar nossa proximidade com nossa casa, nosso país. Fomos caminhar na agradável noite da cidade, pela praça e arredores, estava tudo movimentado e alegre, pessoas vendiam algodão doce feito na hora, balõezinhos de gás e outras porcarias. Ficamos um tempão conversando sobre a vida no banco da praça olhando o movimento intenso de pessoas usando bermudas e regatas, quanto tempo sem ver isso! Há tanto tempo estávamos em climas mais frios que nem imaginava mais que desfrutaria estar ao relento depois do cair da tarde, sem buscar o abrigo quentinho de um saco de dormir. Crianças correndo descalças e sem camisa? Que absurdo esse calor a essa hora da noite! Acho que o vinho começou a fazer efeito, hora de ir dormir!
Alegria! Sentimento ímpar de alegria. Saímos de Puerto Maldonado ao meio dia, depois de aproveitar pra tomar um banho frio, frio! Fazer um lanche no restaurante ali de baixo do hotelzinho, e usar mais um pouco a internet pra ver as altimetrias, hahaha. Que altimetria o quê?! Estamos na planície amazônica! Mesmo assim pedalamos 60km e chegamos até o povoado de Alegria, viu só, porque tanta alegria?! E estamos mesmo muito alegres porque paramos pedir pra acampar numa escola, e pra nossa surpresa tinha ducha e nos chamaram pra acampar dentro de uma sala de aulas, já que estava chovendo, foi mesmo muito bom. Além da facilidade de não molhar a barraca e não ter que tirar todas as coisas da bicicleta, ainda tem luz elétrica e no dia seguinte fica mais rápido para sair.
Então, antes do sol nascer, estrada outra vez, dia de ver o sol nascer no horizonte cheio de castanheiras solitárias nas pastagens planas. O dia foi super quente, mas tinha uma leve brisa, o que amenizava o sofrimento. Passamos por diversos povoados, e em alguns deles haviam pessoas se banhando em rios de águas negras, mas transparentes. Tentador demais! Parar, tomar um banho e ficar por ali, nada de pedal…mas e a vontade de chegar ao Brasil outra vez? Ah, essa vontade foi maior. Num povoado paramos de sopetão quando vimos um quintal cheio de castanhas do pará secando ao sol ainda com a casca. Paramos pra ver se eles vendiam, a senhorinha foi muito simpática e até deu um punhado de castanhas pra gente de graça, estavam deliciosas e pedimos o que ela poderia vender por dois soles, foi quase meio quilo! Hohohoho, estamos ricos! Castanhas cruas e frescas, que beleza, essa é a melhor forma de consumi-las!
Mais à frente uma senhorinha tinha uma banquinha vendendo refrescos em um pequeno carrinho com baldinhos coloridos de refrescos coloridos. Fofa! Paramos ali pra nos reidratar, havia um baldinho com cor de leite e outro de uma fruta estranha que já provamos, acho que no Brasil chamam Buriti, mas aqui é outro nome estranho. O branco era leite de mandioca fermentado, que memória péssima! Também esqueci como é o nome disso. Pedimos pra provar e acabamos tomando dois copaços cada um. Uma delícia! Ela explicou como faz, se cozinha a mandioca e depois tira a água do cozimento, depois esmaga a mandioca e volta a colocar em água até fazer uma espuminha, retira a espuminha e põe pra refrigerar. Não entendi muito bem a parte de colocar água de novo, não sei se é a água é a do cozimento, ou se é nova água, e também por quanto tempo se deixa fermentar, mas com certeza essa é uma bebida que vamos tentar fazer algum dia. O problema é que só depois ficamos sabendo que o que usam pra fermentar é cuspe! Saliva, baba! Éca, mas é tão saboroso! hahaha.
Aquele punhado de castanhas frescas e o leite de mandioca nos alimentaram pelo resto da tarde toda. Incrível! Aqui percebemos a população mais simpática de todo o Perú, as pessoas abanam e cumprimentam sem ficar nos chamando de gringo. Passamos por diversas plantações de mamão, bananeira e mandioca, por campos devastados para o gado e também por queimadas. Há grande quantidade de árvores iguais que são gigantescas, deixadas vivas no meio das plantações e pastagens, são castanheiras protegidas da derrubada por lei, há sempre umas plaquinhas informando isso.
Novamente, dormimos numa escola em nossa noite antes de cruzar a fronteira. Dia havia sido duro, 110km sob o sol escaldante. O meio do dia fez um calor tão absurdo, que de tão tontos e zonzos de suór, paramos pra nos banhar no único riozinho que encontramos no caminho, nem era tão limpo assim, mas precisávamos esfriar o corpo, o sol era implacável… Começo de pedal 5h30 da manhã e só fomos parar as 17h para buscar onde dormir. Em dias assim a gente diz que é dia de bater cartão, trabalho duro, quase 12 horas de trabalho. Desta vez nos recomendaram procurar uma escola em Iberia. Mas era uma grande escola e as vezes não dá certo, porque há muitas pessoas a pedir autorização. Mesmo assim o diretor, que estava lá no campo plantando grama com alunos voluntários, foi super gente fina. Ficamos acampados num fofo gramado viçoso que o pessoal vai lá em Rio Branco, no Brasil, pra comprar as sementes ou mudas, ou seja, dormindo praticamente em solo da mãe gentil. Só não foi muito bem pensado esse negócio de não chegar as altimetrias, esse negócio de que amazônia é planície com certeza é coisa de quem nunca pedalou por aqui! Hava perna nessas ladeiras, de igarapé em igarapé, esse tanto de subida e descida deve dar uma boa elevação acumulada!
Aqui em Ibéria já estamos bem pertinho de casa, falta pouco! Se tudo der certo, amanhã vamos estar no Acre! Acre-dita?! Huhuhuhuhu
- Acampados na sala de aula da escolinha de Alegria. Só montamos a barraca por conta dos mosquitos. Última noite na Amazônia Peruana.
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