Cañon Del Pato – Huaraz a Trujillo
Deixamos Huaraz com muito custo. A cidade é mesmo encantadora, e depois de recuperados os músculos, a vontade era de aproveitar que estávamos ali e fazer mais caminhadas pelas redondezas. Mas, o fato de termos sofrido tanto com equipamentos alugados nos fez cair na real, e pensar em voltar aqui com equipamentos próprios para trekking, mais leves de preferência, para sofrer menos durante a caminhada e aproveitar mais as paisagens magníficas que a natureza nos presenteou nesse cantinho do mundo.
Saindo de Huaraz pegamos uma bela descida sobre o asfalto, em meio ao vale do Rio Santa, que desce até o mar por estas íngremes montanhas. O tempo todo estávamos rodeados de altas e inclinadas montanhas, em algumas partes do caminho reconhecemos lá no alto os locais por onde passamos caminhando no Trekking Quebrada do Alpamayo, vimos a “pampa” onde acampamos a segunda noite e o povoado lá no alto, que mais parecia de mentirinha quando víamos o mesmo desde a trilha.
Logo começou o rípio, a estrada de pedras por entre túneis de diferentes tamanhos e formatos. Foram tantos túneis que perdemos a conta. Passar por eles foi uma experiência incrível. As vezes eram pequenos e curtos túneis, intermitentes com pedacinhos de estrada a céu aberto, e logo abaixo aquele despenhadeiro. Depois alguns longos e escuros túneis, onde era preciso retirar o óculos de sol, apesar da poeira a entrar em nossos olhos, e ligar as lanternas para poder ver alguma coisa, e acabar não entrando em algum buraco da estrada péssima. Foram dois dias descendo a estrada por entre túneis e montanhas de pura pedra. Ver alguma vegetação por aqui? Não… só pedras! Quando muito algum cactus sobrevivente, quando já estávamos em menores altitudes.
Conforme íamos descendo a temperatura agradável das montanhas dava lugar a um bafo quente. Suor e poeira criavam uma camada de proteção solar natural. Já estávamos ficando sem água e sem comida. Foi quando passamos por um povoadinho minúsculo que só tinha uma vendinha. Não tinham os habituais refrescos caseiros por lá. O jeito foi entornar um cocão bem cheio de açúcar. Podemos falar mal o quanto quisermos dessa porcaria açucarada, mas devemos dar crédito a eles por conseguirem vender esse produto até lá onde judas perdeu as botas. Do mais escondido povoado no alto de uma montanha a mais de 4 mil metros, até ao mercadinho de comunidade indígena em plena selva, lá está a mardita bebida cola mais consumida do mundo. E hoje, nesta tarde difícil de pedal pedreira com vento contra e poeira, ela nos salvou. Foi o combustível que precisávamos para completar a jornada e chegar a algum lugar que não fosse despenhadeiro e que coubesse 3 barracas e 5 bicicletas.
Neste final de dia tivemos falta de água, não encontramos mais nenhuma casa. Foi necessário filtrar água bem suja para cozinhar. E banho? Obviamente depois daquela poeira toda, era mais que desejado, só que com aquela água marrom íamos ficar mais sujos do que já estávamos, então foi a chance de terminar com o pacote de lencinhos umedecidos para bumbum de neném e ficar cheirando a fralda usada. Já ´nossos filtros, tadinhos, sofreram um bocado pra deixar a água quase límpida. Arroz com temperinho de terra, nham…delícia! Acredite se quiser, a fome era tanta que parecia uma delícia mesmo, hahaha. Ainda mais depois de dar uma mascarada com alho frito.
Dia seguinte, gratos pela noite à beira da estrada ter sido tranquila para todos nós, subimos nas magrelas para descer finalmente ao nível do mar. Encontramos ainda mais um povoadinho justamente onde começava o asfalto onde pudemos nos abastecer de mangas, laranjas, e outras frutas e guloseimas. Seguimos pedalando sob pressão do inclemente vento contra vindo do oceano. Fomos parar novamente à beira da estrada no final do dia. Desta vez carregando mais água, porque conforme se desce o vale misteriosamente a água desaparecia, ia toda ela diretamente pelo rio precipício abaixo e ninguém era louco de tentar descer até lá. Nenhum escalador no time dá nisso! Melhor carregar mais água o dia todo do que cordas de rapel. Outra noite muito tranquila em meio a pedregal e cactus na borda da estrada. Antes de dormir jogamos a costumeira partida de Uno e fomos dormir com as panças cheias de mangas. A sede do dia seco e quente era absurda, só dava vontade de comer frutas e mais frutas. As laranjas pareciam uma deliciosa sobremesa doce e a garganta agradecia a cítrica água que escoava pela tubulação interna dos fatigados corpos.
Depois da terceira noite, já estávamos praticamente ao nível do mar. Para evitar uma longa curva que aumentaria o trajeto, escolhemos pegar um atalho por entre a propriedade de um projeto de agricultura. A estrada seria de terra, e ficamos apreensivos de tomar mais tempo que pelo asfalto, apesar de aumentar a distância. Mas o barro estava bem firme e batido e cedinho pela manhã o vento estava mais tranquilinho, então brincamos de competiçãozinha entre nós e acabamos fazendo a manhã render muito.
Mas foi o melhor que podíamos ter feito pra poupar energias: gastá-las todas até as 11h da manhã, porque depois disso o clima esquentou muito e a paisagem ficou ainda mais árida. Zero sombras no caminho. A fome bateu forte e fomos encontrar um pequeno pedaço de sombra graças à algumas pedras. Paramos ali para cozinhar umas batatas e almoçar, mas conforme o sol subia no céu a sombra ia diminuindo e fritando nossos miolos. Tivemos de improvisar um abrigo com a lona do pessoal, o tripé da câmera deles, cordas e varetas das barracas e nos meter ali embaixo, segurando tudo, porque o vento já tinha ficado entojadinho outra vez. Ninguém tinha coragem de sair dali daquele sol, no horizonte a imagem se embaçava como nos filmes de velho oeste. O jeito foi almoçar com calma e logo depois da pança cheia e louças lavadas com um mínimo de água, foi a hora da jogatina.
Para fazer hora e sair mais tarde, quando o sol fosse mais brando, resolvemos jogar uma partidinha de Uno. Aí foi mais uma, duas, três…quando nos demos conta, já eram quatro horas da tarde. Gente! Levantar acampamento e cebo nas canelas, daqui a pouco o dia termina e não temos nem água suficiente nem onde colocar a barraca, nesse pedregal. Pedalamos em linha e forte para vencer o vento, e mais uma hora e meia chegávamos à rodovia Panamericana. Paramos algumas vezes nesta movimentada estrada para pedir espaço no terreno e acampar, tivemos alguns pedidos negados. Mas foi bom, porque o último lugar onde fomos perguntar, antes de recorrer a alguma hospedagem birosca, foi um lugar muito legal. Sabe aquela graminha fofa-fofa, rodeada de árvores, banheiro, chuveiro e tranquilidade? Não é mesmo tudo o que um viajante pedalante deseja no final de um suado dia de pedal? Mas que maravilha, banho finalmente, a água saiu marrom pelo ralo, o rango foi mais incrementado, e o colchão verdejante foi sensacional!
Ah, os pequenos prazeres! Você dá muito mais valor quando passa dias dormindo sobre pedregais, sem banho e comendo arroz puro no jantar. Na manhã seguinte, renovados, nos preparamos para entrar em Trujillo. A cidade já vinha parecendo famosa, encontramos muitos ciclistas vindos da Casa de Ciclistas de lá. Aconselhavam cuidado redobrado, mas a verdade é que a entrada na cidade foi super tranquila, muito mais tranquila que a tumultuada entrada em Cusco, por exemplo. Fomos abordados por uns repórteres, antes da entrada da cidade, eles queriam uma matéria para o jornal. Prometeram enviar por e-mail a reportagem, mas nunca recebemos uma vírgula do que escreveram. Desde o começo eu e André fomos contra, estávamos cheios de fome, sem comida nenhuma nos alforges e loucos pra entrar de vez na cidade e comer algo. Fome dá nervoso, e nos deixa sem paciência. Mas o pessoal que estava com a gente começou a responder as perguntas dos jornalistas, que nos interromperam uma bela descida, estas criaturas que não dão a mínima se você tá com sede, fome ou precisando de alguma coisa. O que eles querem saber são números, estatísticas, quantos quilômetros, quantos países, quanto isso, quanto daquilo… Haja paciência! Ainda mais com fome…
Ao entrar em Trujillo procuramos um telefone publico e ligamos para o Lucho, o dono da casa de ciclistas mais antiga da América do Sul. Fomos instruídos de como chegar lá, já que ele se encontrava pedalando, para acompanhar um casal de viajantes que seguia para o norte. Antes de ir para lá, fomos todos a um restaurante. Para os vegetarianos, a única opção lá era batata frita e bebida cola, já que ainda não sabíamos onde encontrar restaurantes Govinda. Mas para comemorar nosso último dia de pedal todos juntos, fizemos companhia aos amigos, regados a muita fritura e açúcar. Até porque depois deste trecho, estávamos com bastante crédito no quesito calorias!
Para nós, a comemoração tinha um gostinho a mais, era o norte do Peru, dali, se iniciaria nosso retorno rumo à nossa terra natal.