Despedida da Cordilheira dos Andes
Chegamos em Cusco bem tontos depois de muitas horas viajando de ônibus. Só o fato de estar dentro de um ônibus seria suficiente pra deixar qualquer um tonto, mas o que agrava a sensação de mal estar em uma viagem pelo Peru, principalmente saindo do nível do mar e passando sobre a Cordilheira dos Andes, são as curvas. Claro, a troca brusca de altitudes também, mas são as curvas que fazem com que as paradas para lanche sejam zero e o lanchinho fornecido pelo serviço de bordo sejam pra matar de fome.
Em Trujillo embarcamos em um ônibus comum, seriam 8h de viagem durante a noite, e chegaríamos em Lima no início da manhã. Viagem tranquila pela Panamericana, poucas curvas e poucas paradas. Em Lima aguardamos a manhã inteira o próximo ônibus para Cusco, que só sairia as 13h30. Optamos por um com assentos que deitassem bastante e fosse confortável o suficiente para aguentar 24h de viagem. Pagamos cerca de 20 reais a mais pelo conforto extra. Mas havia um porém, os bagageiros destes ônibus com assentos tipo cama tem pouquíssimo espaço, e a maioria dele já está reservado para encomendas. Começamos a ficar apreensivos se as bicicletas caberiam realmente lá dentro. Alguns funcionários da empresa queriam que despachássemos as bicicletas no próximo ônibus da empresa. Tivemos que argumentar com os funcionários que da rodoviária de Cusco já seriam necessárias as bicicletas, pois são nosso transporte e nossa mochila, e que desmontando um pouco mais elas, conseguiríamos fazê-las caber no bagageiro. O funcionário já estava irritado com nossa insistência, e só disse pra esperarmos até a hora do embarque pra ver o que iria se resolver. Foi quando começamos a rezar.
Nenhum momento da viagem foi mais tenso, depender da decisão de outras pessoas sobre seu destino não é nada confortável. Ainda mais quando se trata de funcionários de má vontade. Enfim a reza deu certo, e com as bicis desmontadas ao máximo possível, conseguimos fazer elas entrarem, espremidas entre caixas de encomendas e a bagagem do restante dos passageiros. Acho que teria sido um pesadelo ter que despachar as bicicletas em outro ônibus, com as magrelas longe das nossas vistas. Mas deu tudo certo. E no final o pessoal da empresa de ônibus estava até de humor muito melhor.
A viagem demorou mais de 24h, atrasou umas duas horas porque numas das curvas subindo de Abancay para Cusco (já havíamos descido ela de bike, é uma loucura!), o ônibus raspou em outro ônibus que vinha descendo e quebrou uma das janelas do primeiro andar. Apesar de não fazer nenhuma parada em lanchonetes ou postos de gasolina, a viagem foi longa e parecia não terminar mais. Do lado de nossa poltrona uma senhorinha vomitava sem parar. Ainda bem que não param em lanchonetes, porque mesmo de estômago vazio a viagem faz mita gente passar mal.
Em Cusco fomos direto ao Hostel Estrellita. Precisávamos nos re-aclimatar a esta altitude, já que estávamos há mais de 10 dias ao nível do mar em Trujillo. Ficamos zonzos o resto do dia. Aproveitamos uns dias de aclimatação para estudar a estrada adiante, preparar os mantimentos, conversar com a família e alimentar o site, já que vínhamos de longo período sem acesso à internet, e cozinhar também umas comidinhas mais elaboradas para nos deixar fortes para o trecho.
Depois de alguns dias, mais do que planejado, deixamos Cusco e todo seu encanto. Com certeza essa cidade nos surpreendeu de maneira positiva, apesar de extremamente turística, encontramos um hostel que não explora ou rouba o turista, e um comércio local onde é possível estrangeiro comprar comida com preço de morador, sem falar nas inúmeras atrações históricas ao ar livre e de visitação gratuita, basta andar pelas ruas que você já é inundado de história Inca!
Enfim, caímos na estrada, cheios de medos e apreensões, mas com uma baita vontade de entrar novamente em nosso país. Estávamos muito ansiosos para conhecer a floresta amazônica, mas ainda nos restava um grande passo sobre a Cordilheira dos Andes, seriam vários dias de subida até atingirmos a marca acima dos 4mil metros de altitude outra vez, para então desfrutar de uma longa descida até a selva peruana.
Enfrentamos longas subidas, lentos como sempre, levando vários dias até o passo, para então descer até um povoadinho tipicamente peruano, ainda intocado pelo turismo. Fizemos um passo Abra Cuyuni 4.180 msnm no segundo dia e chegamos ao povoado de Catcca onde conseguimos comprar mantimentos. Apesar de estar a beira de uma rodovia asfaltada, o turismo aqui ainda chega a passos lentos, e as provisões não são tão variadas.
Acampamos diversas noites em terrenos próximos à estrada, sem precisar pedir autorização a ninguém. Mesmo escondidos, sempre passava algum peruano ou peruana a pé, a conduzir seus rebanhos de ovelhas, llamas e alpacas. Também fomos acolhidos por uma família muito humilde, que nos cedeu seu quintal em um local onde escasseavam terrenos sem cercados ou longe da vista da estrada, era um Grifo (pequeno posto de gasolina). Mas por estarem em condições tão difíceis nos pediram uma colaboração financeira. Lhes demos o equivalente ao valor de um pernoite em camping, e falamos para eles colocarem uma placa para que mais ciclistas vissem e parassem acampar ali, pois sabemos que muitos ciclistas percorrem aquelas estradas vindos do Brasil ou Bolívia para chegar a Cusco. Assim teriam a possibilidade de fazer um dinheirinho de vez em quando, sem ter custo nenhum além de fornecer um pouco de água para os viajantes cozinhar.
Sabemos que esta estrada tem um potencial muito grande para cicloturismo, é uma rota bastante diversa e com mudanças de paisagem bastante rápida, o que é ideal para uma viagem de bicicleta. Além disso o asfalto é novo, toda a rota de Cusco até a fronteira com o Brasil foi feita com muita qualidade e está em perfeitas condições, o que torna a pedalada prazeirosa e o sofrimento fica só por conta das subidas e da altitude mesmo. É muito bom para apreciar melhor a paisagem, o movimento de veículos ainda é pequeno, mas presente. Alguns carros de turistas, outros pequenos caminhões que trabalham na conclusão da obra. Não presenciamos nenhum movimento de caminhões de carga. A viagem foi muito tranquila neste aspecto.
Durante estes dias de despedida da Cordilheira dos Andes, tivemos diversas oportunidades de vivenciar a cultura tradicional peruana sem interferência do interesse turístico de massa, como vimos em Cusco ou no Vale Sagrado. Passamos por um senhorzinho que cuidava de suas alpacas. Ele ia andando e tricotando um C’hullu colorido, já com aquela feição de avô, com seu rosto castigado pelo frio e pelo sol. Me deu vontade de parar e comprar aquele C’hullu, diretamente das mãos de quem faz. Mas além do pouco dinheiro em soles que carregávamos, era bem possível que ele estivesse a tricotar para algum filho ou neto, e além do mais, ainda faltava muito para terminar o gorrinho. Estes trabalhos levam meses para serem concluídos, e são tarefas dos homens. Apenas disse “Bello trabajo, lindo C’hullu!”, algo como “belo trabalho, lindo gorro!”. Ele acenou com um sorriso de dentes escassos, mas com olhos marejados, talvez ele quisesse mesmo vender o gorro.
No dia seguinte, passamos por diversas crianças vestidas em roupas tradicionais indo estudar a pé naquele frio com garoa, algumas acompanhadas de suas mães também vestidas com muitas cores. Acontecia alguma comemoração na escola. Lá na frente do portão uma multidão de crianças coloridas nas suas vestes, acenavam e corriam junto com nossas bicicletas, não consegui pegar a câmera e filmar, fiquei muito interessada em observar a cena através dos meus próprios olhos. Se eu pegasse a câmera, já não iriam agir normalmente, e eu já estaria os vendo através de uma tela digital. Então deixei pra lá e aproveitei esse lindo momento, que se eternizou só em minha mente e de André (vocês leitores, imaginem com com seu coração como foi, vamos faltar com a imagem desta vez!). Estava feliz demais com esta despedida pura e inesperada da cultura do altiplano peruano. Foi um belo encerramento de uma das partes mais ricas culturalmente desta viagem.
Nesta estrada, tivemos o grande presente de ver mais uma vez montanhas imponentes cheias de neve e glaciares. Na terceira noite, decidimos acampar a poucos metros do Paso Abra Pirhuayani, estávamos a quase 4.725 metros sobre o nível do mar, e ainda haviam várias horas de dia, poderíamos seguir pedalando, descer para um clima mais ameno na estrada da selva. Mas bateu aquela vontade de dormir no topo do passo. O clima estava feio, chuviscava o tempo todo, a neblina cobria e descobria os picos nevados do complexo de montanhas de Ausangate, e bateu uma baita preguiça de seguir. Não sabíamos ainda quantos quilômetros nos restavam de subida, não levamos GPS na viagem e nosso mapa não nos fornecia certeza de distâncias.
Buscamos um bom lugar, sem vista da estrada e quase plano. Era um colchãozinho de mato fofo e úmido, muito bom para amaciar a noite de sono. Ficamos o resto do dia a contemplar as montanhas maravilhosas, cozinhando de frente para elas, e espiando pela janelinha da barraca entre um intervalo de chuva ou granizo. Também tínhamos vista para o último povoado antes da selva, lá em baixo, pequenino e pouco iluminado à noite. O clima não ajudou a vermos o Complexo de Ausangate por completo, com um bom contraste de céu azul por detrás dele. Mas mesmo assim estávamos imensamente felizes de estar ali, dormindo ao lado do gigante. Desta montanha nasce o rio que banha o Vale Sagrado, por isso ela é considerada sagrada pela população local. Eu já considero ela sagrada simplesmente por aquela beleza deslumbrante. Foi difícil partir e dizer que iríamos deixá-la, em busca da selva. Na manhã seguinte, o frio e a névoa continuavam, nos agasalhamos e seguimos morro acima, mas em 10 minutos estávamos no passo. O que significa que dormimos a poucos metros de altitude de diferença do próprio passo.
Fizemos fotos, mas nos apressamos, porque estávamos esfriando demais o corpo, o que não era bom já que enfrentaríamos uma descida ininterrupta de mais de 100km de distância, em meio ao chuvisco, vento, umidade. Nossa entrada pela selva peruana, vai ficar para o próximo post, porque não esperávamos ter tanta história para contar sobre esta pequena parte de nosso trajeto. Daqui para frente, iniciou-se uma nova fase em nossa viagem, aquela onde não se faz mais necessário roupa de frio, depois de mais de um ano enfrentando temperaturas frias. Lá vamos nós para a SELVA!