Gatos X Barraca
Em Coihaique, eu e André ainda precisávamos empreender uma busca que a princípio parecia simples, mas que se revelou mais complicada do que poderíamos imaginar. Estava tudo certo com nosso contato do Warmshowers, e no dia anterior lhe escrevemos de Villa Manihuales. Na cidade abrimos o e-mail e estava respondido, dizendo que nos esperava. Fomos à cabina telefonica, o celular informado deveria estar desligado. Então enviamos um e-mail novamente dizendo onde estávamos e que a ligação fora frustrada, mas que tentaríamos encontrar o endereço. A resposta do e-mail não vinha, esperamos um pouco e decidimos pegar o mapa da cidade e encontrar a casa do anfitrião. Encontramos a rua, começava no número 800 e ia aumentando conforme subia a ladeira. O número que nos deu era 600 e algo, e começamos a pensar que o endereço fornecido estava errado. Chegando ao final da rua, subindo e descendo morros, começamos a perguntar aos moradores, ninguém fazia ideia muito menos sabiam onde o tal número 600 ficava. Apenas uma senhorinha idosa disse que era depois que a estrada acabava, mas nós dois pensamos que ela poderia estar meio gagá, como assim “depois que a rua acaba”, quando acaba, acaba oras! Decidimos procurar os bombeiros, poderiamos conseguir um poso ou ao menos uma informação confiável. Nos bombeiros não nos deixaram ficar, mas falaram que o número procurado era mesmo no final da rua, quando começava a estrada de chão e terminava o asfalto.
Bom, vamos subir o morro de novo e nos embrenhar nos bairros de Coihaique outra vez. Estávamos ansiosos e nervosos, já passavam das 20h, estava quase escurecendo e estávamos com fome, o que piora tudo. Até que enfim encontramos o número, e ficamos um tempão batendo palmas lá na frente e ninguém aparecia. Pensamos em conjunto a célebre expressão “Fudeu!” e começamos a tentar raciocinar o que fazer, eu via no André uma cara de tremenda decepção e provavelmente ele via na minha a própria cara do pavor, porque era bem isso que eu tava sentindo naquele momento. Ter que sair da cidade e buscar onde acampar a essa hora não era algo que eu ficaria feliz em fazer. Principalmente de barriga vazia.
Enquanto pensávamos numa saída para nossa situação a porta abriu e uma menininha disse que ia chamar o irmão. Então lá veio Bóris, nos receber com sua empolgação, sem nem imaginar tudo o que passamos pra estar ali. Nos mostrou o quintal, onde instalaríamos nossa barraca, e a casa, as árvores de cereja e tudo mais. Ficamos conversando um tempo até que percebemos que estava escuro e achamos melhor arrumar nossas coisas lá fora.
No meio da noite, quando nossos corpos cansados mal conseguiam distinguir realidade de sonho, um barulho estranho não chegou nos acordar por completo, mas ainda sonolento André deu umas batidas nas paredes da barraca, imaginando ser algum animal e eu semi-acordei meio assustada com aquilo, mas voltei a pegar no sono profundo instantaneamente. Na manhã seguinte demos de cara com um problemão.
Acordamos pensando no que teria sido aquele barulho, na noite anterior estávamos dopados de cansaço, acordar e sair da barraca pra ver o que era em plena madrugada fria foi impossível. Várias marcas de patas de gato pela lona da barraca, e em um lado, marcas de patas com furinhos de unhas e pêlos de gato grudados com a umidade no tecido. Aparentemente ele tentou escalar a barraca e escorregou. Para nossa sorte o tecido resistiu e somente a parte interna ficou com furos mais perceptíveis, mas nenhum rasgo.
Mesmo assim ficamos com medo, mas principalmente com muita raiva do gato. Fomos falar com Bóris e ver o que poderíamos fazer. Nossa vontade era ir embora, mas precisávamos encontrar um novo pneu para a roda dianteira do André que estava ainda com uma bolha saliente, já aparecendo os remendos que ele havia feito por dentro. O gato nos tirou a paciência e o bom humor, mas Bóris nos convidou a ficar dentro da casa então ficamos e muito mais aliviados .
Quando paramos descansar, nunca é realmente um descanso. É preciso lavar roupa, comprar comida, fazer manutenção nas bicis, remendar alguma roupa. Assim foi o dia de “descanso”, todo gasto percorrendo supermercados, fruteiras, lojas granel e principalmente garimpando um pneu decente entre os pneus velhos da bicicletaria da cidade. No final do dia fizemos nosso pique-nique na praça conforme combinado com os casais, cada um trouxe o seu “lanchinho” e ficamos batendo papo ali diante do vento patagônico. O tempo no céu não parecia muito amigável e o pessoal combinou mesmo assim de encontrar-se na manhã seguinte para pedalarmos juntos até Villa Cerro Castillo.
Estávamos prontos na manhã seguinte e já partindo na compania de nosso anfitrião. Mas André percebeu um raio quebrado e perdemos um belo tempo arrumando. Saímos da cidade já perto do meio-dia e não pudemos encontrar os casais.
Pedalamos o resto da tarde até encontrar um camping, dentro do Parque Reserva Nacional Cerro Castillo, já era quase noite quando encontramos o pessoal todo lá. O camping era muito bonito ao lado de uma Laguna, bastante rústico e de preço muito bom para grupos grandes, de maneira que tivemos imensa sorte em encontrar todos lá em todos os sentidos. O pessoal havia acendido uma fogueira, e até tarde ficamos ao redor dela conversando e rindo.
Pela manhã cedinho todos se demoraram a sair das barracas, e rimos muito quando todos concordamos “Porque diabos combinamos de levantar as 7 e 30 da manhã?!”. Mesmo assim alguém arriscou abrir o zíper de alguma barraca e fazer todo mundo dentro dos sacos de dormir pensar “Merda, alguém aí já levantou, acho que vou precisar fazer o mesmo, mas é que está tão quentinho dentro do saco de dormir.”
Foi começar a pedalar que o clima patagônico se fez notar. A chuva começou fina e insistente, e um vento leve tirava qualquer calor que o exercício de pedalar gerava. Na bifurcação antes de Cerro Castillo nos despediríamos nos amigos franceses, que iriam para outro lado. Nós e o outro casal seguiríamos pela ruta 7. No ponto de ônibus fizemos um lanche e apesar do frio ficamos um tempão de papo, como se ninguém quisesse se despedir e seguir abaixo de chuva. Para aquecer o corpo pulávamos e agitávamos os braços, mas não era suficiente. Os franceses deram a partida, afinal tinham o horário do barco marcado. O jeito foi nós também seguirmos.
Ainda pedalamos o resto da tarde toda até encontrar um local acampável. O vento havia aumentado muito e o chuvisco deixava tudo mais difícil, e o rípio recomeçara, desta vez pior que em qualquer outra parte, pedras soltas e muitas subidas. Mesmo assim a vista do Vale Rio Murta era impressionante, montanhas que pareciam bolinhas e um imenso plano alagadiço por onde corria o rio. Acampamos no lado da estrada, num pedacinho de grama entre nalcas e árvores baixinhas que barravam a ventania. Ali esprememos as barracas e as bicicletas. Cozinhamos qualquer coisa e tratamos de descansar.
- àgua de degelo
- Vale do Rio murta
- Despedida dos amigos franceses
- Camping Laguna Chiguay
- Salto próximo de Coyhaique