Há alguns dias dos últimos dias pela Carretera Austral
Chegamos a Cochrane, compramos mantimentos que faltavam, encontramos novamente o casal de amigos, cogitamos ficar num camping, mas haviam gatos. Nós seguimos e os amigos se entregaram aos confortos do camping, mesmo com gatos nele. Pedalamos mais um pouco e encontramos um lugar perfeito, um paraíso para dormir, mas haviam touros muito intimidadores lá. Mal conseguíamos encostar a bunda no selim novamente, mas a ideia de ter a barraca estraçalhada por um par de chifres pontiagudos no meio da noite não era nada amigável. Nos empurramos até encontrar um local pouco ideal para nossas colunas, e bem longe de gatos e touros ou qualquer outro animal com alguma coisa pontiaguda. Tivemos uma nada amigável discussão a respeito de chuveiros quentes e pé de cerejas x gatos, gramas perfeitas x touros com chifres pontiagudos, chorei um pouco de raiva de mim mesma, não ajudei o André a cozinhar, e me comportei feito uma criança mimada. Eu só queria um pouco de água escaldando este corpo cansado, mas o André jura que era mesmo é TPM.
Enfim dormimos e acordamos no outro dia não completamente renovados. Mas encontramos um arroio e fazia uma grande brecha de sol no meio das pesadas nuvens e concordamos ser uma boa ideia tomar um banho ali mesmo na estrada e lavar algumas roupas. Quando já estávamos terminando a lavanderia, avistamos nossos amigos se aproximando. Almoçamos juntos olhando o Cordão Los Ñadis e um lago não muito bonito. Eles seguiram primeiro, acampariam adiante. Nós estávamos sem pressa e com planos de acampar em qualquer lugar que fosse bonito.
Encontramos um belo refúgio em frente ao acesso para Los Ñadis, ao lado de um rio e de frente para uma ponte. Fizemos fogueira e tudo, o perfeito camping selvagem domesticado. Dia seguinte de tão confortáveis que estávamos na nossa propriedade temporária, chegamos a cometer a heresia de começar a pedalar depois do meio-dia. O resultado da quilometragem foram vergonhosos 30km, pois o fim da tarde chegou rápido e encontramos uma nova propriedade temporária com ótimo quintal, acesso a um rio e perto de uma excelente fonte de água cênica. Não pagamos nada pelo pequeno pedaço de paraíso que hoje chamaríamos de quintal, muito menos pela bem aparada grama sem touros de chifres pontiagudos nas redondezas.
Mas nos demos conta que a Carreteira Austral chegava próximo do fim, ao menos para nós ela estava quase completa. Então seguimos cedo, para não cometer mais uma heresia cicloturística, e tratamos de subir a serra chuvosa nas proximidades de Caleta Tortel. Mas antes disso nos certificamos de que não entraríamos em Tortel, a armadilha turística mais cruel de todos os tempos, porque Tortel é famosa por ser a cidade mais chuvosa do Chile, e mais famosa ainda entre ciclistas e mochileiros, porque não há campings e as hospedagens não são nada econômicas. Pra piorar a estrada é terrivelmente pedregosa e há uma escadaria para chegar ao “centro”, o que não é nada prazeroso quando se está com uma bicicleta carregada com tranqueira. Então os mais preguiçosos ficam eternamente presos lá, por conta da chuva sem fim, e só tem a possibilidade de sair quando há ônibus uma ou duas vezes por semana, ou quando alguém já não tão cansado de turistas impertinentes pedindo carona, oferece um espaço na caçamba da camionete.
Chegamos a Puerto Yungay encharcados e tremendo de frio, mas nos recusamos a entrar na cafeteria turística com medo de sermos perigosamente abduzidos pelo calor quentinho da estufa à lenha que observávamos fumegar ali de fora. Então ficamos passando frio junto com 3 mochileiros estadunidenses que também batiam queixos e tentavam em vão, assim como nós, secar as roupas molhadas espalhando-as pelos acentos do abrigo.
A balsa chegou e nos sentimos na primeira classe ao subir para a cabine quentinha e sentar em bancos estofados. Do outro lado do mar, em Rio Bravo só havia um abrigo para quem espera pela barca. Era o lugar perfeito para fingirmos que havíamos pago por um caro chalet à beira mar com vista para luxuosos fiordes e glaciares pendurados nas montanhas próximas. Como pegamos a última balsa, pensávamos estar livres de turistas e tratamos de tomar um banho de pia no banheirinho que havia ali. É preciso dizer que continuava a chover muito e nem sequer haviam esperanças de que o aguaceiro parasse tão logo.