Montanha Russa à moda Peruana
Finalmente conseguimos vencer a inércia e deixar o hostel Estrellita, nos despedir de todos os ciclistas que lá estavam, e pegar a estrada outra vez. A cada dia no Estrellita, a sensação era de “quero ficar mais um dia, só mais um dia”, e isso ia se repetindo dia após dia. Acabamos saindo depois do meio dia. Quando ficamos muito tempo em um lugar é sempre assim, até organizar toda bagagem que se espalhou misteriosamente para todos os quantos do quarto, leva muito tempo. Minhas coisas acabam indo parar nas mochilas do André, e as dele costumam sumir. Deve ter algum gnomo dentro dos nossos alforges que faz sumir os objetos do André, e normalmente são suas luvas e seu óculos. Aí ele vem desesperado perguntando se eu vi, ou se está comigo. “Afe, meu! Já disse que não tá comigo!” E está dada a largada ao estresse do quem procura acha…
Bom, então finalmente vencemos a subida maluca que te leva para fora de Cusco, rumo a Abancay. Este trecho é normalmente feito por muitos ciclistas, de Abancay a grande maioria toma o rumo descendo para as linhas de Nazca. Mas até aí nossa idéia era seguir pelas serras até encontrar com a Cordillera Blanca, próximo a Huaraz, mesmo já conhecendo todos os perfis altimétricos na teoria. Só que a prática é sempre muito diferente da teoria.
Saindo de Cusco logo quando começa uma grande descida para um pequeno povoado, tivemos uma das mais belas visões da viagem. Um paredão branco se ergue ao longe, e da estrada mesmo é possível contemplá-lo e desacreditar dos próprios olhos. Será verdade o que vejo? Era a montanha Salcantay, uma montanha ainda mais surreal que este vale profundo para onde estamos despencando estrada abaixo por 30 km. Já não lembro o nome do povoado, mas era cheio de transporte turístico. Provavelmente o pessoal que vem para fazer a trilha para o Salcantay fica hospedado por ali e toma os transportes até mais próximo da montanha a partir desta cidadezinha. Para nós ainda era cedo e decidimos seguir. Dali só subida, para os próximos dias era o que tinha, não adianta choramingar pra mamãezinha.
Então seguimos lentamente como lesmas se arrastando. Ainda tivemos algumas breves descidas, mas em geral era aquela constância ritmada a 6km/h. No final da tarde avistamos umas casinhas, e já cansados todos nós 4 decidimos perguntar por lugar para acampar por ali. Só que não teve conversa. Foi um dos poucos lugares onde precisamos de ajuda e não conseguimos nem diálogo. Suspeitamos que as pessoas não falavam espanhol, já que tínhamos lido que era provável que passaríamos por vilarejos onde só se fala Quéchua. Mas havia algo mais do que apenas diferença de idioma. A reação das pessoas era diferente do que estávamos acostumados. Era um fechar a cara, virar as costas e fazer gestos exasperados com as mãos como quem diz “Rapa o pé daqui rapá!” Então rapemo!
Primeiro pela desilusão. Depois por um forte indício de que ali se crescia uma erva utilizada para fazer uns cigarrillos mucho locos que muita gente anda consumindo por aí. Então decidimos que subir a gente não subia mais. Então a gente desceu. É, as vezes um passo pra trás é melhor que um passo pra frente. Acabamos descendo uns 2km, o que no dia seguinte significaria uma meia hora de pedal morro acima. Mas não tem problema não, o que precisamos agora é um lugar tranquilo pra dormir, longe de pessoas que podem ser hostis conosco. Acampamos num terreno plano de um barranco nas margens de um riozinho pequenino, mas feroz, que corria lá em baixo pelos veios profundíssimos deste vale. Dormimos rindo, do clima ameno pela primeira vez em tanto tempo! Ficamos cozinhando fora da barraca e jogando coversa fora, olhando pras montanhas e rindo com nossos companheiros de viagem. Ficar fora da barraca ao anoitecer era coisa que não fazíamos há tempos, há muito tempo!
Mas para o dia seguinte era preciso acordar cedo, ou suportar o calor. Foi quando pisamos no asfalto depois da pequena trilha dificultosa de onde acampamos, vimos um ciclista descendo à toda velocidade pela estrada. É claro que ele não ia parar pra falar com a gente. Então gritamos todos “Gringo, hey, griiiiingooooo!” Rimos muito da situação. Nós, quem diria, chamando os outros de gringo. Ele deve ter olhado pra trás e rido da situação também. Entendemos sua forte inclinação a nem sequer frear nesta deliciosa descida. Ele deveria estar descendo provavelmente durante toda aquela manhã desde cedo!
Mas para nós o dia seria muito diferente do dele. Só subida. Subimos e fomos parar em outro povoado cheio de transporte turístico. Dali o pessoal vai para o Salcantay também, e até para o povoado que fica mais próximo das ruínas de Choquequirao.
Mas a subida ainda não tava nem perto de terminar e o dia já chegava ao fim. Era preciso seguir mais uns quilômetros morro acima até nos distanciarmos de um dos inúmeros povoados que nos acompanharam durante a subida. Este dia foi o que mais nos irritamos com os moradores pela estrada.
Acho que era algum tipo de feriado. Todos pareciam não ter nada pra fazer, a não ser sentar na frente de suas casas e beber chicha. Estavam a maioria bêbados e nos agrediam verbalmente de maneira hostil aquela infame palavrinha.
Acho que foi castigo por termos gritado para o ciclista que vinha descendo cedo pela manhã, hehehe. Teve um momento em que uma família nos parou no meio de uma curva, disse que o filho dela nunca tiva visto um “gringo”, por isso ela pediu pra gente parar para ele “olhar”.
Então ficamos alguns segundos ali nos olhando e sentindo como se fôssemos bichos de zoológico. Eles não queriam conversar com a gente, saber de onde éramos e pra onde íamos. Só queriam simplesmente observar estas criaturas estranhas.
Pensando bem, nem era uma situação complicada. Nós também viemos pra cá pedalar para observar e conhecer a cultura local, ver como se vestem, como são os traços dos seus rostos, as cores que usam, os chapéus e adereços de suas vestimentas. Então não era nada de mais retribuir ao pequeno peruanito, ficando nós ali por alguns instantes e ele a nos observar (junto com todo o povoado que se somou a ele e nos rodeou).
Mas estávamos no final de um cansativo dia, no meio de uma curva na subida por onde os veículos passavam tirando fina, ansiosos por encontrar um lugar pra acampar e descansar o maltratado traseiro já que o dia ameaçava chegar ao fim. Então aquilo foi o estopim para o mau humor de todos nós quatro. Mau humor que só foi curar quando encontramos um magnífico gramado verdejante que nossas bundas tanto anseavam por sentar.
E o melhor é que por ali não haviam casas, nem povoados, nem ninguém! E estávamos escondidos das vistas da estrada, relativamente escondidos, porque até escondidos os peruanos conseguem cheirar os fedidos gringos e avistar desde longe, para poder terem tempo de botar a cabeça pra fora do ônibus e gritar “Gringoooos”.
Pois bem. Deixa pra lá. Nesta noite todos dormimos confortáveis e reconfortados. Menos o André. Ele por escolha própria dormiu fora da barraca. Não gente. Nós não discutimos, nem brigamos, nem nada do tipo.
Ele quis ir dormir lá fora pra fazer uma filmagem longa noturna, já que era dia de chuva de meteoritos e o céu estava espetacular mesmo. Só que eu que não sou louca de num frio destes ir com meu saquinho de dormir sequinho, me umidificar no orvalho destas altitudes só pra ver umas 30 e poucas estrelas cadentes. Já tenho desejos atendidos demais.
Não ia ter criatividade pra fazer mais uns 30 desejos a cada estrela cadente que eu visse. Então eu tive a imensa barraca só pra mim e me esparramei nela enquanto o André passava sua noite na companhia das estrelas e da umidade lá fora.
Ainda tivemos mais meio dia de subidas antes de avistar mais uma cadeia de montanhas nevadas espetacular, e aí sim começar a descida pra Abancay. Esta visão foi demais! Chegamos ao mirante exaustos depois de 3 dias de PURA subida.
Então mesmo com a comida acabando, mesmo com um pouco de fome, e mesmo com uma puta vontade de encarar os curtos quilômetros de descida, paramos por algumas horas a ficar sem fazer nada no mirante. Ficamos ali feito crianças bobas contemplando aquela maravilha.
Ficamos ali batendo fotos inúteis e imprestáveis uns dos outros. Simplesmente felizes demais pra pensar em qualquer outra coisa. Nos deixamos levar pelo tempo e só fomos nos dar conta de que já fazia horas demais que estávamos ali quando a barriga começou a roncar e caímos na real.
Só tínhamos um punhado de açúcar para comer no restante do trecho, e ainda teríamos algumas horas de subida até o passo. Foi um punhado de açúcar a cada intervalo para tomar água que nos levou diretamente para Abancay.