Perdidos no Paso Rio Mayer
Chegamos na Gendarmeria Argentina depois de encontrar um brasileiro em bicicleta pelo caminho. Justo no dia em que pensamos que não encontraríamos uma viva-alma, fomos topar justo com um brasileiro. Conversamos um pouco com o Ney, mas o fim de nossa comida e a pressa de chegar logo em algum lugar apressou a conversa, mas não queríamos parar de falar. Pegamos algumas dicas do caminho com o Ney, e lhe demos uns toques sobre os abrigos pelo caminho dele ao sul. Passamos a cerca e pedalamos mais algumas horas pelo carreiro em meio ao pasto, fazendo levantar uma revoada de uns cento e poucos cauquenes que comiam sua graminha tranquilos à beira do arroio. Depois tivemos que tirar toda bagagem da bicicleta para passar um rio, e então seguir mais uma estradinha sinuosa em meio ao bosque. Nos deparamos com a carcaça de um puma, pendurado em uma árvore, já sem pele, uma visão terrível.
Na gendarmeria havia apenas um oficial, não pode nos dar nenhuma informação do caminho até o posto de Carabineiros do Chile, porque deste lado da fronteira o grupo troca a cada mês, e este grupo recém havia chego, de modo que todos os outros oficiais estavam de caminhão explorando o caminho pelo rio Mayer. Fizemos um macarrão de almoço na cozinha da gendarmeria e esquentamos uma água para a térmica. Pegamos apenas um pouco de água de fonte, já que agora teríamos inúmeros arroios à disposição, e seguimos até ter que tirar todas as coisas da bicicleta de novo para passar outro arroio com água congelante. Ali mesmo acampamos, em meio ao mato alto, ao lado do arroio, a alguns km da gendarmeria e com o visual de um entardecer tão lindo dentro do bosque, os raios de sol filtrados pelas copas das árvores.
Recuperados do trajeto do dia anterior, restaram uns poucos quilômetros do carreiro aberto pelo caminhão da gendarmeria até termos outro rio para cruzar. Desta vez estava raso e a bicicleta passou inteira. Aí o desafio era encontrar a trilha suave feita sobre as pedras do rio, marcadas pelas rodas do caminhão. Foi possível pedalar alguns trechos, outros a pedraria era tanta que só empurrando. Até que finalmente visualizamos ao longe a tal passarela de ovelhas. Segundo os gendarmes, dali até o Chile era só seguir no sentido oeste. “Ok, fácil”, pensamos, uma só direção. Tudo na teoria pare tão mais fácil que na prática!
Tiramos novamente todas as coisas da bicicleta para atravessar a estreita passarela feita sob medida para passar apenas o rebanho de ovelhas. Abaixo da passarela pendurada, estava um caudaloso rio de águas azul turquesa. A esta etapa sobrevivemos, depois daí é que tudo se complica.
Além da recomendação do amigo Maurício, de nâo fazer este paso, hehehe, tínhamos algumas instruções em inglês de uns ciclistas que fizeram o caminho no sentido oposto ao nosso, eles vinham se guiando em uma montanha em forma de semi-círculo, que de onde estávamos, não tínhamos nem ideia de onde estaria. A trilha agora seria somente a aberta pelos cavaleiros que percorrem a região, ou então caóticas trilhas feitas pelo gado.
Logo após a passarela, fomos dar em um bosque cheio de troncos caídos, onde era preciso levantar a bicicleta a todo momento, para conseguir seguir a “trilha”. Mas logo aparecia outra e mais outra, e não sabíamos direito qual caminho seguir. O trecho de bosque era curto, mas devido a dificuldade de passagem com bicicleta carregada, demoramos ali um tempo.
Até que o bosque termina em uma descida arenosa direto a um outro riacho de água azulada e grandes pedras redondas. Cruzamos este riacho e fomos parar em outro bosque, com árvores mais baixas e arbustos rasteiros mais densos e espinhosos, o que tornava a passagem com bicicleta e alforges um risco para os equipamentos, furar pneu ou as bolsas estanques eram a menor das nossas preocupações a esta altura. O que nos importava era chegar, encontrar o caminho.
Seguimos uma trilha de cavalo que ia mais ou menos a oeste, e fomos parar em um imenso pasto. As plantas rasteiras soltavam espinhos que prendiam nas meias e na barra da calça, depois entravam dentro da bota e pinicavam, precisávamos parar cada pouco pra limpar essa bagunça e conseguir andar. No pasto nos demos conta de que não chegaríamos a lugar nenhum, haviam milhares de outras trilhas e alguns gados espalhados explicavam o porque disso. Voltamos.
No alto do morro mais próximo, as árvores eram mais baixas e conseguíamos ver um pouco mais adiante. Começamos a ouvir um som de motosserra, o que é um bom sinal de que estamos próximo de alguém que pode nos informar como sair dali. Tentamos seguir sentido oeste, mas a trilha caía em um barranco, e já lá em baixo, um mangue quase impossível de passar. Decidimos deixar as bicicletas numa porção mais aberta, e seguir a pé e sem peso para tentar encontrar algum caminho, seguindo o som da motosserra.
Por mais rios e lodos que tivéssemos que passar, decidimos continuar no sentido do som. Passamos um rio pela cintura, subimos um barranco nos agarrando a raízes de árvores, e isso dava um desespero, seria extremamente difícil passar toda nossa bagagem por esse caminho. Nos aproximávamos do som da motosserra.
Continuamos no sentido oeste, mas a copa densa das árvores não deixava á vista qualquer ponto de referência. Chegamos a avistar uma cerca, fomos até ela e procurávamos o cortador de lenha. Eram 18h em ponto e o som da máquina parou.Começamos a gritar “hola! Holááá”. Ninguém respondia. Pulamos a grade e procuramos qualquer sinal de casa ou acampamento de lenhadores. Encontramos um corral de ovelhas abandonado, deixado pra trás com alguns pelegos e restos de lã tosquiada. Algumas botas velhas, canecas, garrafas de água e um abrigo improvisado, mas nenhuma pessoa, muito menos alguma casa.
Subimos mais um pouco esta colina para tentar avistar algo ao longe, já eram quase 20h e precisávamos montar nosso acampamento, primeiro, é claro, encontrar onde deixamos as bicicletas. A nossa sorte que ainda tínhamos comida para uma ou duas noites, se bem racionado. Voltamos seguindo a nossa sombra, que apontava para leste, desta vez descobrimos um caminho em que não seria preciso cruzar o rio e o barranco tão alto.
Reencontramos as bicicletas e fomos descansar assustados, demoramos a dormir, apesar do cansaço. Líamos e relíamos as instruções dos ciclistas que fizeram o tal caminho, indicavam um rio de águas vermelhas, mas nós a essa altura já havíamos passados por vários desta cor, qual seria o certo? Que trilha de cavalos é a mais marcada? Matutávamos estratégias para o dia seguinte.
Pensamos em ir com as bicicletas vazias até a cerca, e daí seguir o rastro próximo dela até encontrar o começo ou o fim dela, pedalando por esta parte mais aberta, fazendo o caminho rapidamente. Depois de encontrado o caminho certo, voltaríamos a pé para buscar o restante da bagagem. Na manhã seguinte foi o que fizemos.
Chegamos até a cerca e encontramos uma caneca azul, igual a que vimos na tarde anterior. Seguimos para oeste a partir daí, pedalando loucamente pela trilha mais aberta. Chegamos num encontro de cercas, em um gramado aberto. Avistávamos o Rio Mayer, e ouvimos uns cães latindo. André pulou o cercado e foi ver se encontrava alguém. Um alívio! Estávamos na fazenda que os ciclistas explicavam no nosso “guia”. Deixamos as bicis e voltamos a pé buscar as coisas.
Na volta perdemos onde estava a tal caneca, e fomos parar muito pra frente, tendo que voltar um trecho e tentar descobrir outra trilha até nosso acampamento. André queria continuar indo por ali, mas só nos enfiávamos mais e mais em caminhos de coelhos. Eu já irritada e com agonia daquelas árvores arranhando por todo corpo, decidi voltar e tentar achar a trilha por onde viemos. André resmungava a contragosto mas me seguiu. Encontramos nossas coisas! Outro alívio!
Trazer tudo no lombo é muito pior que na bicicleta. A todo momento tínhamos que parar e descansar. Já perto do meio dia chegamos até as bicicletas, passamos tudo por baixo da cerca e seguimos o começo da estrada até avistarmos o posto de Carabineiros do Chile. Conforme o dono da fazenda, teríamos mais um rio para passar.
Tiramos tudo da bicicleta outra vez, passamos o rio com a água mais congelante de todas as anteriores, mas com o deliciosos gosto da certeza de ser o último a molhar nossas botas. E não pense que é possível atravessar estes rios de chinelo, crocs, ou de pé descalço. É preciso molhar as botas, e ter certeza que os cadarços estão bem amarrados. As grandes pedras redondas são lisas, e a água gelada te faz perder a sensibilidade, sem falar no peso da bicicleta e bagagens que precisa arrastar.
Chegamos ao outro lado, os carabineiros loucos pra carimbar uns papéis e escrever no livrinho deles. Mas nós estávamos muito famintos e então nos apresentaram um refúgio onde poderíamos cozinhar e descansar um pouco. Depois da pança cheia e das roupas secas, entramos no escritório dos oficiais. Todos os presentes vieram dar uma espiada.
Nos contaram que era Carnaval no Brasil, e que tinha acontecido uma tragédia em uma discoteca alguns dias antes, e que algumas cidades não iriam comemorar o carnaval. Nossa, estamos mesmo por fora das notícias! Ficamos em total 20 dias isolados pela estrada, sem comunicação com família e sem notícias do mundo ao redor.
Seguimos nosso caminho pela estrada de verdade, um rípio lindo e maravilhoso que pra nós teve gosto de asfalto recém feito, comparado com as estradas que vínhamos enfrentando na última semana. Acampamos um pouco antes de chegar ao cruzamento com a ruta 7, a Carretera Austral, próximo a uma laguna linda. Aliás, este trecho de estrada é um dos mais lindos de toda a patagônia Chilena, e quase ninguém vem pedalar por aqui, porque todos tomam o barco em Villa O’Higgins para entrar na Argentina, ou então, fazem algum outro passo mais ao norte.
Este passo foi um enorme desafio pra nós, mas também o trecho mais emocionante e belo de toda esta nossa viagem em bicicleta.
Ter experimentado os ventos e desertos da ruta 40 para então dar um valor ainda maior às montanhas e seus verdes bosques, aos arroios abundantes em suas águas congelantes que descem direto dos glaciares eternos, a ouvir novamente os pássaros, as curicacas (bandurrias), os cauquenes e até os pequenos insetos. Nos banhamos alegres numa água muito gelada sob o pôr-do-sol quente em um dos poucos dias de céu azul que tivemos na Carretera Austral.
- Aliviados, novamente perto de algum lugar que vende comida! hehehe
- Achar um “croque” na trilha logo após o seu chinelo ter arrebentado foi providencial pra economizar o dinheiro de um par novo!
- Cheguemo negada! Grupo El Bello, Paso Mayer