Prontos pra MUITA lama e poeira {Pedalando pela Transamazônica}
Trajeto: Rurópolis>Placas>Uruará>Medicilândia>Brasil Novo (~306 km)
Primeiro dia de Transamazônica, limpos e revigorados depois do descanso na escolinha de Rurópolis
18/11/13 – Depois da chuvarada de ontem, o dia amanheceu nublado e a estrada ainda estava bem lamacenta e cheia de poças. Nós com tudo limpinho depois de um dia de descanso, estávamos empolgados em descobrir o que a Transamazônica reservava para nós. Nem bem pedalamos 10km e uma nuvem negra corria o céu. Encontramos uma varanda de uma casa a tempo de correr pra lá. Os pingos de chuva eram grossos e pesados, não teríamos a mínima chance nesse temporal. Por sorte a varanda era grande o suficiente e o menino que apareceu na porta parecia ser a única pessoa na casa. Avisamos eles que iríamos esperar a chuva passar. Uma chuva que lavou o quintal e carregou pra longe o que estivesse pela frente. Uma hora depois o céu voltou ao cinza normal, a chuvarada deu lugar a uma garoa fina, então seguimos depois de fazer algumas tapiocas.
Neste trecho a estrada estava boa, com bastante cascalho compactado e poucos lugares com terra e lama. A pedalada foi mais fresca até parte da tarde, diferente de todos os outros dias anteriores, devido a ausência do sol, mas nas ladeiras mais fortes o suór era inevitável. No final da tarde encontramos uma escolinha, havíamos começado bem cedo então as 15h já estávamos bem desgastados e cansados. Haveria reunião de pais e após poderíamos dormir na única sala. Tomamos banho com a água que estava em uma caixa de água ainda não instalada, jogando água no corpo com canecas, atrás da escola. Quando os pais e alunos começaram a chegar no fim da tarde, a criançada nos rodeou, tímidos no início, foi só o primeiro começar uma pergunta para todos os outros querer perguntar sua curiosidade toda ao mesmo tempo, que confusão alegre. Enquanto a reunião seguia, cozinhávamos nossa janta em meio às perguntanças da criançada.
Uma cicatriz na floresta, ao longe se vê de onde estamos vindo…
…e para frente se vê a cicatriz indicando o caminho para onde vamos.
A cada 10 km era possível encontrar um povoado, com uma escolinha rural sempre presente e de portas abertas para pernoitarmos.
19/11/13 – Na manhã seguinte o jeito era pular cedo pra escapar do sol. Passamos ao meio dia pela cidade de Placas, onde um rapaz insistia em querer nos vender duas motocicletas, porque de bicicleta a gente ia demorar demais pra chegar em Altamira. Ele não entendia porque não queríamos viajar de moto nem de graça, e insistíamos nas velhas e surradas bicicletas. Depois de feita a “feira”, fizemos nossa gororoba de abacate com tomate e farinha de mandioca, pro espanto de um grupo de trabalhadores que estava próximo, novidade por aqui abacate salgado, ainda mais com farinha. Deixamos a cidadezinha sombreada com mangueiras para enfrentar o sol castigador das 13h. Dali pra frente as ladeiras ficaram bastante frequentes e não conseguíamos pedalar, só empurrar. A estrada também não estava das melhores, a trepidação era grande e as descidas eram bem lentas. Depois de Placas estava mais difícil encontrar povoados, estavam mais distantes, e nosso ritmo mais lento também. Conseguimos água em uma casa e depois demoramos a chegar ao próximo povoado. Aqui os pequenos povoados se formam na entrada para as estradas vicinais, todas perpendiculares a Rodovia Transamazônica. Muitas destas estradas seguem por centenas de quilômetros adentro e não tem conexão entre si. As vezes duas propriedades vizinhas estão a 50km de distância uma da outra, mas é preciso fazer uma volta de 300km para conectar uma à outra. Estas vicinais são tão longas, que as casas que se instalam em sua entrada são o ponto de encontro dos moradores, é onde também fica a escola rural, uma mercearia e um bar, as vezes uma igreja também. Por este motivo ficamos tranquilos em pedalar pela Transamazônica depois dos primeiros dias, sabíamos que sempre teríamos apoio de água e uma mercearia com alguma comida com bastante frequência.
No final da tarde chegamos exaustos ao vilarejo do km 201(contado a partir de Altamira), onde havia uma escolinha. Esperamos a aula terminar e conseguimos a autorização da professora para dormir no corredor. Tomamos um banho improvisado na torneira atrás da escola. Neste calor que faz na amazônia, é impossível conseguir dormir sem lavar o corpo depois de um dia de pedal. A sensação é tão ruim que parece que a poeira e o suor impedem a pele de respirar, chega a dar a sensação de que o próprio pulmão não funciona direito. Igualmente as noites são quentes e mesmo acampados só com o mosquiteiro de nossa barraca, debaixo do teto da escola, o calor era intenso. Para o bem de nosso sono, o começo da noite foi de temporal com fortes ventos e trovões, refrescou bastante. Choveu o resto da noite inteira.
Mais uma escola que nos recebe, esta noite caiu um temporal daqueles e foi muito bom estar sobre um teto!
20/11/13 – Como resultado do temporal da noite anterior, o desastre estava anunciado, LAMA! Logo nas primeiras ladeiras víamos caminhões estacionados no topo delas. Imaginávamos o porquê. Se eles descessem a ladeira lamacenta, poderiam desgovernar o veículo, e mesmo que vencessem a descida sem problemas, não conseguiriam fazer a pesada carga chegar ao topo da ladeira seguinte. Neste trecho a Transamazônica é uma planície enrugada, são sequências intermináveis de descidas e subidas íngremes e curtas. Andamos com cuidado, a bicicleta dançando nas descidas, e nós, patinando para conseguir empurrá-las na subida. Depois de exaustivos 12 km dessa maneira, paramos em frente a um bar, onde vimos uma grama sobrevivente ao caos, já partimos pra cima dela tentando limpar as sandálias da bota de lama que elas haviam se transformado. Catamos uns pauzinhos do chão e começamos a tentar desobstruir os freios e os para-lamas, que aliás, deveríamos ter removido assim que vimos a bagunça começar. Enquanto estávamos por ali, só um trator passou na estrada, carregando um carro popular. O assunto entre os locais era de que ninguém estaria conseguindo passar pela ladeira que estava em frente.
Demos o dia como encerrado e perguntamos se haveria um local onde poderíamos passar a noite. Nos cederam um galpão, ao lado do bar. Ele foi usado na época da construção da estrada, como alojamento de trabalhadores. O local era bem interessante, com marcações de onde cada um deveria armar sua rede, por certo era assim que todos dormiam. O Galpão estava bem sujo, e caindo aos pedaços, mas foi um ótimo refúgio para nós, já que continuou chovendo o resto do dia. A chuva foi parar só no final da tarde, o que nos deu esperança de no dia seguinte a estrada estar um pouco mais seca e ser possível chegarmos a Uruará.
Um pouco de chuva do temporal da noite anterior já deixou a poeira desse jeito! Uma cola perfeita para nossas sandálias e pneus.
Depois de apenas 12km avançados no dia, desistimos de lutar contra a lama e preferimos esperar a estrada secar um pouco até o dia seguinte.
21/11/13 – Chegamos em Ururá antes do meio dia, depois de 19km. Estávamos cansados e encontramos um hotelzinho bem simples, mas com wifi e super barato. Fomos pra lá lavar toda a lama, descansar e dar notícias pra família. Se você estiver pedalando e passar por Uruará, procure pelo hotel Junior, pagamos R$15 por pessoa com café da manhã incluso. Encontrar este preço é raro no Brasil…
23/11/13 – Depois do dia de descanso, prontos para seguir, uma nova chuvarada cai na cidade e atrasa nossa saída. Mesmo já perto do meio-dia, compramos nosso litrão de açaí no mercado público e seguimos pela estrada. A lama era grande e fomos encontrar pouso 40 km depois, em uma escola no vilarejo de Caima, onde não há sinal de telefone algum, nem fixo, mas há internet. Tivemos a sorte de terem mangueira para o pátio, então pudemos lavar bonitinhas as bicicletas, que chegaram assim por lá:
Mas no dia seguinte alguns trechos ainda estavam bem molhados, com muitas poças, e a bicicletinha foi ficando assim…
Mais uma escola nos ajuda, desta vez demos sorte que havia uma bela torneira com mangueira, onde pudemos lavar minimamente as partes mais afetadas pela lama.
24/11/13 – A chuva deu uma trégua e fomos bem até a escolinha seguinte, dormimos em Vila União da Floresta.
Uma pausa para ver o cacau secando ao sol, depois de alguns km de muita trepidação, paramos para comer um arroz com feijão e um abacaxi de sobremesa.
Nunca havíamos visto libélulas vermelhas. Estas brincavam na superfície de um igarapé.
A transamazônica é assim, uma linha reta traçada no mapa do Pará, não há muitas curvas contornando os morros, a estrada segue o caminho mais curto, e por isso as madeiras são sofríveis, não só para ciclistas.
25/11/13 – Saímos cedo da escolinha, e chegamos próximo ao meio-dia em Medicilândia. Pegamos muitos trechos de estrada ruim, e as ladeiras de sempre
Mas no topo de cada um dos montes que se vence, é possível ver parte da imensidão que é esta planície de tão rica floresta.
Nos dias que amanhece mais fresco, é possível respirar o orvalho. Mas só antes do sol despertar, porque quando ele desperta faz tudo evaporar.
Elas aparecem cedo pela manhã e também no final da tarde, sempre barulhentas e espetaculosas!
Logo no início do asfalto, demos de cara com uma cooperativa de chocolate. Perguntamos como funcionava o processo e demos sorte do presidente da associação estar por ali, ele nos explicou bem detalhado e nos deu muita atenção, mostrando como o processo desde o plantio até o produto final. Encontramos um excelente chocolate amargo 70% e sem ingredientes de origem animal. Investimos um pouco e levamos um quilo da iguaria, que logo logo iria se transformar em combustível. Além da barra, encontramos um chocolate granulado puro que compramos para experimentar, sensacional
Aqui uma ponte interditada não é motivo para impedir caminhões, carros e ciclistas de passar… coisa normal!
Comemorando a chegada a um trecho de asfalto, finalmente!
Além da recompensa de termos chegado ao asfalto, ainda encontramos uma cooperativa de beneficiadores de cacau, que produzem um chocolate vegano e amargo do jeito que a gente gosta. O jeito foi estocar, levamos um quilo da iguaria…mas foi pouco!
Mas ainda não tínhamos onde ficar na cidade, nos sentíamos muito cansados para seguir. Tentamos na prefeitura, mas nos encaminharam para a Igreja. Lá há um apartamento disponível para o pessoal que vem até a cidade participar de algo da comunidade mas que mora na zona rural, ou simplesmente quem necessita de apoio por algumas noites na cidade. O padre foi muito gentil em nos aceitar lá.
Seu João e suas poesias que nos fazem chorar. Agradecemos a companhia, Seu João, suas sábias palavras e sábia maneira de viver! Um grande abraço, força sempre!
Chegando no local fomos recebidos pelo seu João, que nos fez companhia na tarde e nos contou lindas histórias e declamou uma poesia emocionante sobre a realidade em que vive, sobre o trabalho e falecimento da missionária Irmã Dorothy Stang e sobre suas emoções. Ficamos muito interessados no que seu João tinha a nos contar, e ficamos conversando por um bom tempo. Na manhã seguinte, parecia que éramos velhos amigos de seu João, e foi difícil a despedida. Sempre surgia algum assunto para conversar, e depois a emoção em despedir de uma pessoa tão pacífica como seu João, uma pessoa que emana paz e tranquilidade, bondade e doação. Com certeza seu João é um exemplo de vida que levaremos com muito carinho em nossas andanças. Muito obrigado seu João, pelo seu exemplo de vida e lições que não precisaram ser ditas, mas que captamos no ar só de observá-lo contando sua história de vida
Na casa de acolhida da Igreja, estava seu João, um animador comunitário, pessoa simples mas de uma beleza de coração sem fim. Não sabe ler, mas é poeta, não sabe escrever, mas tem tudo na memória!
O pessoal da Igreja de Medicilândia, nosso agradecimento pela acolhida!
26/11/13 – Depois da difícil despedida do pessoal da Igreja, acabamos saindo com o sol já forte. O rendimento foi baixíssimo porque nossa pressão baixou muito depois das 10h da manhã e não estava fácil vencer as subidas com tanto calor. Foi preciso deitar e tirar um cochilo em um ponto de ônibus de palha que oferecia uma das poucas sombras de todo o caminho. Cozinhamos quiabo enquanto descansávamos, nos revezamos na dormida. Lá pelas 14h nos sentimos melhor em seguir. Uma hora depois já nos aproximávamos de Brasil Novo, onde conseguimos permissão para acampar no Mercado de Produtores, onde o pessoal da zona rural expõe e vende seus produtos nos dias específicos. Amanhã estaremos em Altamira, mas não conseguimos avisar o contato de um amigo de um amigo que mora por lá. O açaí congelado já foi encomendado com o pessoal da vendinha aqui ao lado, eles ainda nos presentearam umas mangas gigantes, que eles chamam coração de boi, são imensas e deliciosas.
Um litrinho de açaí descongelando no alforge enquanto pedala, pra na hora do sol mais forte estar no ponto de ser devorado!