Tierra del Fuego al fin del mundo
Primeiro dia na terra do fogo e o vento já dizia a que veio. O dia todo o vento nas costas não nos fez sentir quão mal estava o rípio. Apesar do relevo oscilante no início, o restante do dia foi de média de 20km/h sem fazer muita força. Cada parada de lanche e descanso era uma odisseia voava aveia pra todo lado, só sobrava um pouco na caneca para nos alimentar, apesar do esforço em nos proteger da ventania e tentar salvar algumas migalhas de comida.
Haviam nos dado a dica de pedir pouso em algumas das estâncias no caminho, já que com esse vento é impossível que qualquer barraca resista. Contrariamos a preciosa informação levados pela empolgação do vento a favor. Já as 21h da noite havíamos feito 100km no rípio e chegávamos a um ponto de ônibus com as janelas quebradas onde mal cabíamos. Mesmo assim, o André insistiu em colocar as bicicletas pra dentro, “Segurança ao invés de conforto” era o que ele me dizia. O céu estava ameaçador e o vento desta vez não diminuiu ao cair da noite como no dia anterior. Pior, ele só aumentava e trazia consigo pingos de chuva que para a nossa sorte e falta de juízo não chegou a cair. No ponto de ônibus onde nosso mapa marca “Onaisin” tivemos a segunda pior noite da viagem. A primeira foi essa aqui, se vocês não lembrarem. Bivacamos naquele frio dentro do ponto de ônibus e todas as tentativas de tapar as janelas com toldo ou isolante de dormir foram frustradas, assim dormimos com o vento na cara e caso aparecesse algum puma, seríamos lanchinho fácil pra ele, dado o desprotegido do “abrigo” e nosso extremo cansaço.
Dia seguinte, ao abrir os olhos é uma benção sentir-se vivo, mais um dia presente, um presente de Deus, uma benção continuar a jornada. Eu só me sentia grata por estar me sentindo bem apesar de muito cansada e sonolenta. Acordei com a cara do tamanho de um balão bem inflado e vermelho. Seguimos nosso caminho cedinho, pois não havia muito o que fazer por ali.
Cinquenta quilômetros de rípio nos aguardavam antes de encontrar o pavimento, e no fim do rípio as aduanas. O vento já estava fortíssimo, até porque não parou a noite toda. Chegando ao asfalto ele estava de lado, meio em diagonal, e mesmo assim nos ajudou a manter uma média alta. A idéia era fazer 80km mais até Rio Grande e lá procurar um camping ou alojamento. Chegamos na cidade ao cair da tarde e tratamos de procurar mantimentos e buscar um lugar para ficar. Tentamos de tudo, até o albergue municipal, que estava vazio mas nos disseram que estava cheio. Não tínhamos onde ficar e o hostel mais barato saía a preço de hotel de luxo. Tratamos de ir ao posto de gasolina que uns amigos indicaram que havia ducha quente de graça. Aí tomamos um belo banho e usamos internet. Já as 21h saímos da área urbana em busca de um lugar para acampar, o sol estava para se pôr mas ainda havia algumas horas de claridade, pelo menos até as 23h. Estávamos preocupados, sem ter onde ficar e com um vento louco para atazanar as idéias. Assim mesmo, tiramos um pouco de paciência do fundo da alma para apreciar um dos mais belos entardecer de toda a viagem.
A periferia de Rio Grande não é nada bonita ou amigável, principalmente quando a noite se aproxima. Fomos encontrar abrigo na última construção da cidade, já bem fora da área urbana. Havia um quadradinho de grama protegido do vento e ninguém atendia ao nosso chamado “Holaaaaa”. Até que no prédio em frente um senhor nos chamou. Nos ofereceram ficar dentro da estufa, era o horto municipal que a comunidade queria transformar em camping. Depois conversando com eles, ofereceram a cozinha, e depois ofereceram usar o fogão. Quanta sorte! Até o banheiro tinha água quente nas torneiras.
Este foi o dia mais longo da viagem até agora, mais de 8h de pedal e 150km acumulados, começamos a pedalar as 7h e 30min e terminamos as 22h. Dormimos na cozinha do horto municipal, com calefação e fogão a disposição, quentinhos e bem acolhidos.
Dia seguinte, que novidade! O vento não parou. Até Tolhuin queríamos e precisávamos fazer em um dia. O vento nos golpeou de lado o tempo todo. Por termos dormido pouco, não haviam muitas forças. Nos primeiros 20km encontramos um caminhão estacionado, paramos comer algo e o sono nos pegou. Fizemos uma siesta tomando sol e apoiados nas rodas do caminhão que funcionava agora para nós como um barravento.
Recomeçar a pedalar foi tão difícil! Mesmo assim conseguimos chegar a Tolhuin no final da tarde. Aos poucos a paisagem de pampa foi dando lugar a um bosque. Bandos e bandos de guanacos nas áreas mais abertas e alguns que nos seguiam, rindo de nosso infortúnio, o vento!
Em Tolhuin procuramos pela famosa Padaria, ou a Padaria dos Famosos. As cozinheiras e os padeiros nos mostraram o lugar onde acolhem os ciclistas que vêm de todas partes do mundo. Um quarto quentinho, com as paredes todas desenhadas, banho quente, beliche, cama e colchão de casal. Quando já adormecíamos, chegou um casal de mochileiros italianos que também foram acolhidos.
Na manhã seguinte alcançamos chegar ao camping livre do lago Escondido. Aí ficamos um dia a mais de descanso. Depois de descansar neste lugar tão tranquilo e maravilhoso, estávamos recuperados para enfrentar o Paso Garibaldi, uma subida gradiente e suave que assusta a muitos, mas que se revelou amigável e charmosa. No entanto até Ushuaia esta não seria a única subida, e chegamos ao famoso centro urbana austral no cair da tarde, depois de pegar um pouco de chuva pelo caminho.
Ushuaia! Finalmente! Esta cidade que a tantos ciclistas atrai por ser o ponto urbano mais ao sul do continente, coroada por montanhas de neve e picos tão íngremes e de formatos tão estranhos. Mas toda esta magia se perdeu ao sermos forçados contra o intenso movimento do transito de veículos. O acesso ao centro nada amigável aos ciclistas, nenhum acostamento, pista estreita, vento e frio. Talvez se tivéssemos chego mais cedo, não em horário de rush teríamos nos sentido mais calmos e seguros.
Enfim chegamos ao centro e a primeira coisa a fazer seguramente é buscar comida, supermercados, abastecer o tanque. Nas informações turísticas apenas nos informaram os campings privados e nos disseram que o camping municipal, supostamente gratuíto não recebia estrangeiros, apenas argentinos, e que não poderíamos acampar aí. Além disso era afastado demais do centro, 4km por estrada de chão e com vento contra. Bom, assim mesmo fomos ao camping municipal, olhando cada cantinho promissor pelo caminho para acampar, caso nos recusassem no local. Já na saída da cidade havia um camping privado, mas o preço era proibitivo, arriscamos outra vez seguir com aquele vento na cara. Chegamos ao camping municipal e a informação da Desinformação turística se revelou totalmente equivocada. É permitido sim acampar ali, estrangeiro ou residente. Mas não há conforto nenhum. Não há água, os banheiros são nojentos (sem água!), e o camping municipal é o local onde os munícipes descarregam suas energias, ou em outras palavras, é o lugar permitido para bagunçar.
Então dormimos protegidos do vento atrás de um arbusto, mas na manhã seguinte não nos protegia da falta de noção de certos pais de família. As 6h da manhã um ruído horrível nos desperta. Vontade de matar um! Quando abrimos a porta da barraca o que vemos: uma menina de não mais de 10 anos dirigia um quadriciclo barulhento para todos os lados. O jeito foi desarmar acampamento e tentar encontrar uma ducha pela cidade. Não logramos. Então fomos ao camping Pista del Andino e ficamos uma noite aí, era preciso lavar roupa e tomar banho. O camping era lindo, mas igualmente caro. Esperávamos o amigo Arthur que chegaria por estes dias. Compramos um vinho e cozinhamos uma janta o esperando. Por azar fomos nos encontrar somente no dia seguinte. Seguimos novamente ao camping municipal os três na intenção de visitar o Parque nos dias seguintes. Nos agarrou a preguiça e a avareza e acabamos ficando no camping municipal todos os dias e não fomos ao parque só para bater aquela famosa foto na placa da Bahia Lapataia. Preferimos ficar curtindo a chuvinha no camping municipal na compania do amigo Arthur e no dia seguinte também deixamos Ushuaia com apenas um destino: o norte!