Últimos dias na Carretera Austral
Neste trecho final da famosa ruta 7, ou Carretera Austral, ficou bem claro o famoso ditado que martela na cabeça de ciclistas que se metem a pedalar nesta úmida região chileno-patagônica. Repitam comigo o versinho que provavelmente também vai martelar sua cabeça, caso você esteja por estas bandas neste momento, e é muito provável que também estará chovendo:
“Tudo o que está úmido pode ser considerado seco,
Tudo o que está molhado pode ser considerado úmido,
E se ainda restar alguma coisa seca,
Considere-a um milagre!”
Então saímos de nossa confortável cabana Mil estrelas em Rio Bravo debaixo de chuva. O relevo que nos esperava era estupidamente confuso e extenuante. Ainda bem que os primeiros 20km quase planos fizeram adiantarmos o atraso que aquelas próximas estupidamente íngremes subidas nos trariam. No chalét da noite anterior recebemos a visita do rapaz que faz a manutenção, e ele nos contou deste próximo abrigo, a uns 40 ou 50 km dali, e que fica do lado de um lago com o nome de algum padre que não me lembro mais o nome. Eram a exatos 48km de onde estávamos na noite anterior, e porque chovia tanto resolvemos ficar um dia descansando e fingindo que havíamos alugado uma carérrima cabana rústica na chiquérrima Patagônia Chilena, com vista para glaciares pendurados, mas sem nenhuma estrela, porque o clima estava pavorosamente chuvoso e úmido.
Por sorte os gaúchos chilenos que tomam conta da cabana/refúgio mantém sempre um bom estoque de lenha seca para os desafortunados e molhados ciclistas que vem descansar por ali eventualmente toda santa noite durante a temporada de “verão”, se é que esse tipo de inverno fora de época pode ser chamado de verão.
Tratamos de cozinhar uma polenta bem cozida, e ficar assistindo filme enquanto a bateria do notebook não chegava ao fim, como se estivéssemos mesmo em um luxuoso resort selvagem aos pés de uma lareira luxuosamente rústica feita com concreto bruto, e com fogo não cenográfico, em que geralmente pessoas muito ricas que não tem mais onde gastar sua fortuna, costumam mesmo pagar uma bagatela pela experiência inusitadamente rústica e selvagem, só para depois contar aos amigos como foi uma aventura dormir em um lugar tão rústico em meio a uma natureza tão selvagem, mas controladamente domesticada e segura, segundo os padrões do último guia do Planeta Solitário que está estampado na tela do seu chiquérrimo leitor de livro digital.
Então por ali brincamos também de construtores para espantar o tédio da chuva de granizo que caía com um barulhão no telhado de metal. Fizemos um belo banquinho na varanda e reformamos o acesso esquerdo com umas pedras, a fim de que os próximos hóspedes cicloturísticos não molhem ainda mais seus pés na gigantesca poça de água que se forma quando chove mais do que 2 dias seguidos. O que pode ser considerado muito comum.
No final da tarde ouvimos vozes e adivinhamos que eram nossos amigos que haviam entrado na armadilha turística de Tortel, mas que foram um dos poucos sortudos que conseguiram sair daquele buraco carregados por um simpático motorista de ônibus que se compadeceu da lastimável situação em que eles se encontravam em meio a uma estrada cheia de pedras grandes com suas bicicletas aro 700 com pneus finos feitas para asfaltos europeus.
Então nos esprememos em 5 pessoas e 2 bicicletas dentro do abrigo (ou você acha que bicicleta brasileira também não passa frio?!), enquanto outras 3 bicicletas ficavam lá fora dormindo na varanda (porque são bicicletas européias e não passam frio como as brasileiras). Mas deu tudo certo, com exceção de que amanheceu chovendo a baldes e tivemos cometer outra heresia cicloturística e ficar comendo polenta sapecada e tomando chá enquanto a chuva não ia embora, e só começar a pedalar após as 13 horas e 30 minutos, que foi quando a chuva virou uma fina garoa só para nos enganar, e começar a chover novamente 5 minutos depois de termos efetivamente partido para pedalar.
Era nosso último dia pedalando na Carretera Austral, e só faltavam 53km chuvosos quilômetros até Villa O’Higgins. Mas, chegamos bem. Era final de tarde e nossos amigos que chegaram por lá um pouco antes escolheram justo o camping mais caro da paróquia. Felizmente era muito confortável e a proprietária muito simpática. Mas tudo isso não foi capaz de tirar do André a sensação e a expressão de desgosto ao se deparar com a situação de a água quente do camping ter acabado justo na hora em que ele iria tomar banho de chuveiro, depois de mais de um mês de banho de lencinho.
Agora mais um dia e estaremos finalmente a caminho da Argentina outra vez.