Últimos quilômetros no Brasil e a entrada nas terras Argentinas
De São Miguel das Missões seguimos para as ruínas do povoado de São Lourenço das Missões, por estradas de terra, um descanso para os ouvidos já que estávamos a vários dias pedalando em rodovias asfaltadas de grande movimento e péssimo acostamento. Nas ruínas de São Lourenço Mártir a entrada é gratuita e a atração fica por conta das ovelhas de raça crioula, as mesmas criadas pelos jesuítas. Estas ovelhas são funcionárias da prefeitura, pois vivendo ali nas ruínas mantém o local limpo do mato. Outra atração do local é o cemitério, cenário digno de um filme da família Adams. Além dos túmulos da época dos Jesuítas, há outros túmulos antigos e mais recentes, pois o povoado continua usando o mesmo local como cemitério. Uhhhhh!
Gradativamente o relevo foi ficando mais plano e com menos curvas, começamos a enxergar o horizonte mais longe. Em Santo Antônio das Missões pernoitamos no albergue municipal, com direito a banho, camas e até uma horta à nossa disposição. No caminho para São Borja, vimos lebres correndo ao lado da rodovia, finalmente alguma coisa para animar a paisagem de campos deste dia nublado.
Em São Borja conseguimos acampar no pátio da Polícia Rodoviária Federal e aproveitamos pra gastar nossos últimos vinte reais com guloseimas que seriam mais difíceis de conseguir na Argentina. Entramos na país vizinho passando a ponte a pedal, apesar dos avisos nos proibirem de fazer de tal maneira. Querem o quê, que a gente atravesse a ponte voando?
Estranha a sensação de passar uma fronteira pela primeira vez. Na paisagem nada realmente muda drasticamente. Mas já na alfândega o espanhol que eu pensava que tinha aprendido na escola não valeu de muita coisa, pois não entendia aquele hablar rapidinho dos argentinos. Fomos de português mesmo e graças à greve dos servidores da Polícia Federal não havia movimento algum. Agora nosso passaporte recebe o primeiro carimbo: visto de turista de 90 dias.
Ao entrar na cidade de Santo Tomé precisávamos encontrar uma maneira de nos comunicarmos com o Mauro. Ele estava participando em uma competição de Mountain Bike que acontecia na cidade. Bateu aquele gelo de pedir informações em espanhol, e pra complicar ainda mais, poucos comércios estavam abertos já que era domingo. Fomos pedalando, adiando nosso primeiro diálogo em terra estranha e aí é que realmente sentimos mudanças drásticas, as mudanças culturais. Até que encontramos a praça principal, e vimos que ainda acontecia alguma programação da corrida. Ficamos num banco da praça tomando coragem de perguntar algo em espanhol para algumas pessoas que estavam por ali. Quando o André finalmente toma iniciativa de falar com os argentinos, e se dirige para o local onde estavam dispostos os troféus da competição, nosso anfitrião está saindo de dentro do salão e o reconhece. Bem, nem foi preciso travar um diálogo com algum argentino estranho, pra nossa sorte!
Ficamos alguns dias em Santo Tomé nos reorganizando, precisávamos conseguir sacar dinheiro em pesos, encontrar combustível para o fogareiro, comprar um chip de operadora Argentina, fazer o revezamento das correntes das bicicletas, também já resolvemos tirar os alforges da magrela pela primeira vez nesta viagem, para ver se havia algum ponto de desgaste e se estava tudo bem com os bagageiros. Neste dia de descanso choveu bastante, mas no dia que resolvemos partir rumo ao interior argentino o dia abre lindo sol e seguimos pelas planícies acompanhados nos primeiros quilômetros de nosso amigo.
A natureza se revelou uma surpresa para nós, logo nos primeiros quilômetros pedalados avistamos ñandus na beira da rodovia, mais adiante um jacaré (morto), muitas aves diferentes.
As rutas sem acostamento de primeiro nos assustam um pouco, pois vínhamos pedalando pelos acostamentos nas rodovias brasileiras. Mas ao contrário do Brasil, percebemos duas características das rutas argentinas muito discrepantes das rodovias no Brasil. Uma delas é que há bem menos movimento nas rutas que pegamos por enquanto do que em qualquer outra rodovia que já pedalamos no Brasil. A segunda é o respeito, nenhum motorista nos colocou em perigo ou nos ameaçou passando perto demais ou nos jogando para a grama. Com exceção de um caminhoneiro brasileiro que queria ultrapassar outro caminhão em local proibido no sentido contrário ao nosso, e mesmo nos vendo na pista, deu sinal de luz e buzinou para que saíssemos, e ao tirarmos pra grama ainda nos chingou. Detalhe que era numa reta imensa, e não havia nenhum outro veículo vindo no sentido contrário por quilômetros e quilômetros. Ele poderia ter esperado alguns segundos. Mas nããããão, ele preferiu fazer os ciclistas idiotas se estrupiarem no gramado esburacado e cheio de arame de pneu de caminhão, no susto. Valeu motora brazuca!
Passamos por povoados muito pequenos próximos a fronteira. Notamos um povo fechado e não sentimos nenhuma simpatia. Logo na primeira noite que buscamos local para acampar, após muitas tentativas fomos intimidados por uma senhora que não ficou muito feliz em nos ver acampando por ali. Decidimos sair e continuar pedalando, mas já era noite e a fome batia. Felizmente após meia hora de pedal no escuro e mais algumas tentativas de encontrar local, demos com um posto de gasolina que tinha nos fundos uma área com mesas e churrasqueiras e toda iluminada. Perfeito para aquela noite! Na segunda noite também foi preciso acampar em um posto de gasolina, pois não encontrávamos nada, nenhuma casa, fazenda, estância. Só avistamos criação de gado.
Na terceira noite nos obrigamos a pedir ajuda para a policia da rodovia, instalada em um pequeno posto. Neste dia pretendíamos chegar ao povoado de San Jaime, mas o vento contra nos surpreendeu e uma chuvinha gelada caiu para melhorar nosso astral. Quase sem comida, precisamos apelar para bolachas caras de um posto de gasolina em Quatro Bocas. Algumas tentativas de conseguir colocar barraca em propriedades e em uma escolinha foram mal sucedidas. Ventava muito e os policiais nos liberaram um quartinho com camas. Foi nossa salvação para aquele dia frio, chuvoso e de fortes ventos.
No dia seguinte o dia resolveu melhorar, mas o vento não. Conseguimos chegar só em Los Conquistadores, agora já na província de Entre Rios. Pedalando o dia inteiro só conseguimos cobrir 50 km. Precisávamos de um descanso. Nesta província percebemos um povo mais aberto e conversador. Conseguimos autorização para pernoitar acampados na Escola Agrotécnica. No outro dia o cansaço bateu forte e pedimos para ficar mais um dia. Finalmente encontramos frutas a um preço pagável, maçãs e peras deliciosas. Infelizmente as bananas daqui vem do equador, será hora de racionar o consumo delas.
Em breve, mais relatos e fotos de nossa passagem pelas planícies argentinas, da província de Corrientes para a de Entre Rios até o encontro com as Serras de Córdoba.